A posição do dominante e do dominado independe de credo ou etnia. É uma questão
de ocasião histórica EU SEI que não é de bom tom gostar de Charlston
Heston. Mas como controlar as impressões da infância? Amo Charlston Heston à
loucura, especialmente a fase bíblica e a sua filmografia niilista, pós-Guerra
Fria, comendo Soylent Green e apanhando no "Planeta dos Macacos".
Revi "Ben-Hur" com meu filho pequeno. Os olhos nórdicos de Heston contrastaram com a morenice do Crescente Fértil, seu corpo musculoso arqueou, colapsando a cabeça sobre o peito, enquanto elevava a corcova para sustentar o peso do sofrimento humano. Heston se contorce quando ama e quando odeia e se desloca em câmera lenta, como se o ar fosse feito de gelatina.
São cenas de uma dificuldade ímpar para o intérprete. Falar em pausas solenes, reagir em "big close" à notícia de que a mãe e a irmã contraíram lepra na masmorra, exibir-se em tanga acorrentado ao remo e conduzir a biga. A biga! Quem da Royal Shakespeare Company comandaria os cavalos com a dramaticidade de Heston?
A representação mais poética que o cinema já produziu do mito da caverna de Platão está em "Ben-Hur". Do fundo escuro da gruta dos leprosos, uma gigantesca boca negra exibe uma paisagem ao sol, estática, como nuvem, em contraste com o breu da cova. A mãe leprosa balbucia um "tenho medo", enquanto a futura nora a leva em direção ao luminoso Paraíso. "O mundo é muito mais do que se vê", assegura Esther.
Chorei e emendei com "Os Dez Mandamentos", onde o saiote egípcio e a peruca em tufo lateral não ajudam o ianque. Yul Bryner leva vantagem em trajes típicos. Mas o anacronismo vai além das vestes.
As convicções pessoais do astro contradizem o discurso misericordioso de seus personagens. A águia romana fez ninho na América e Heston, bélico e republicano, encarna seu poderio. Ele é mais alto, mais forte e atlético do que todos os figurantes a quem chama de sua gente.
Após o fim da Segunda Guerra, os americanos foram elevados à condição de escolhidos de Deus.
Heston encarna Judá, o príncipe hebreu, com a convicção de que representa o bem e a justiça. Mas a mesma potência que ajudou a derrotar Hitler arrasou Hiroshima com a determinação das Legiões e, depois, exportou o "american way of life" à maneira de Roma.
Em "A Vida de Brian", obra prima dos Monty Python, radicais palestinos debatem sobre a vilania do Império de César. O que Roma nos deu? Indaga um revolucionário.
Estradas, responde alguém. E aquedutos! Mais outro. A arquitetura! Saneamento básico, educação e progresso! A arte e os banhos! A lista não tem fim.
O movimento sionista, fundado para dar um ponto final às perseguições milenares às juderias, recebeu o apoio de homens como o barão de Rothschild, cujas doações à causa arremataram 125 mil acres de terra prometida.
Israel trouxe desenvolvimento e riqueza para a região, mas também segregação, injustiça, insatisfação e revolta. É o enredo de "Ben-Hur" só que ligeiramente fora de ordem, com os judeus no papel de romanos e os árabes no papel de judeus. É estranhíssimo.
A maior afronta do mundo árabe, segundo Hany Abu Assad, meu amigo palestino de Nazaré, é resistir ao consumismo imposto pelo Ocidente. Sua postura é similar à de Ben-Hur perante Messala, que recusa a exigência do tribuno de se transformar em romano. Hany diz que a burca é uma bênção para as mulheres feias e provoca afirmando que a escravidão da eterna juventude, pregada pela Max Factor, é um mal igualmente deplorável.
E ainda lança uma profecia digna das Sete Pragas do Egito: as catástrofes naturais obrigarão o homem a retornar à sua origem primitiva, na qual pastores, agricultores e artesãos resistirão às vacas magras enquanto os que sucumbiram à luxúria da modernidade, não.
Dá o que pensar. Eu, por preconceito gerado pelo fato de os muçulmanos não se parecerem comigo, acreditei que o terno bem cortado de Bashar-al-Assad e o Louboutin de sua esposa seriam garantias de civilidade, mas sua elegância inglesa foi proporcional à ferocidade.
A posição do senhor e do escravo, do dominante e do dominado, independe de credo ou etnia. É tudo uma questão de ocasião histórica. Basta ver "Ben-Hur" com a perspectiva dos últimos 50 anos.
Revi "Ben-Hur" com meu filho pequeno. Os olhos nórdicos de Heston contrastaram com a morenice do Crescente Fértil, seu corpo musculoso arqueou, colapsando a cabeça sobre o peito, enquanto elevava a corcova para sustentar o peso do sofrimento humano. Heston se contorce quando ama e quando odeia e se desloca em câmera lenta, como se o ar fosse feito de gelatina.
São cenas de uma dificuldade ímpar para o intérprete. Falar em pausas solenes, reagir em "big close" à notícia de que a mãe e a irmã contraíram lepra na masmorra, exibir-se em tanga acorrentado ao remo e conduzir a biga. A biga! Quem da Royal Shakespeare Company comandaria os cavalos com a dramaticidade de Heston?
A representação mais poética que o cinema já produziu do mito da caverna de Platão está em "Ben-Hur". Do fundo escuro da gruta dos leprosos, uma gigantesca boca negra exibe uma paisagem ao sol, estática, como nuvem, em contraste com o breu da cova. A mãe leprosa balbucia um "tenho medo", enquanto a futura nora a leva em direção ao luminoso Paraíso. "O mundo é muito mais do que se vê", assegura Esther.
Chorei e emendei com "Os Dez Mandamentos", onde o saiote egípcio e a peruca em tufo lateral não ajudam o ianque. Yul Bryner leva vantagem em trajes típicos. Mas o anacronismo vai além das vestes.
As convicções pessoais do astro contradizem o discurso misericordioso de seus personagens. A águia romana fez ninho na América e Heston, bélico e republicano, encarna seu poderio. Ele é mais alto, mais forte e atlético do que todos os figurantes a quem chama de sua gente.
Após o fim da Segunda Guerra, os americanos foram elevados à condição de escolhidos de Deus.
Heston encarna Judá, o príncipe hebreu, com a convicção de que representa o bem e a justiça. Mas a mesma potência que ajudou a derrotar Hitler arrasou Hiroshima com a determinação das Legiões e, depois, exportou o "american way of life" à maneira de Roma.
Em "A Vida de Brian", obra prima dos Monty Python, radicais palestinos debatem sobre a vilania do Império de César. O que Roma nos deu? Indaga um revolucionário.
Estradas, responde alguém. E aquedutos! Mais outro. A arquitetura! Saneamento básico, educação e progresso! A arte e os banhos! A lista não tem fim.
O movimento sionista, fundado para dar um ponto final às perseguições milenares às juderias, recebeu o apoio de homens como o barão de Rothschild, cujas doações à causa arremataram 125 mil acres de terra prometida.
Israel trouxe desenvolvimento e riqueza para a região, mas também segregação, injustiça, insatisfação e revolta. É o enredo de "Ben-Hur" só que ligeiramente fora de ordem, com os judeus no papel de romanos e os árabes no papel de judeus. É estranhíssimo.
A maior afronta do mundo árabe, segundo Hany Abu Assad, meu amigo palestino de Nazaré, é resistir ao consumismo imposto pelo Ocidente. Sua postura é similar à de Ben-Hur perante Messala, que recusa a exigência do tribuno de se transformar em romano. Hany diz que a burca é uma bênção para as mulheres feias e provoca afirmando que a escravidão da eterna juventude, pregada pela Max Factor, é um mal igualmente deplorável.
E ainda lança uma profecia digna das Sete Pragas do Egito: as catástrofes naturais obrigarão o homem a retornar à sua origem primitiva, na qual pastores, agricultores e artesãos resistirão às vacas magras enquanto os que sucumbiram à luxúria da modernidade, não.
Dá o que pensar. Eu, por preconceito gerado pelo fato de os muçulmanos não se parecerem comigo, acreditei que o terno bem cortado de Bashar-al-Assad e o Louboutin de sua esposa seriam garantias de civilidade, mas sua elegância inglesa foi proporcional à ferocidade.
A posição do senhor e do escravo, do dominante e do dominado, independe de credo ou etnia. É tudo uma questão de ocasião histórica. Basta ver "Ben-Hur" com a perspectiva dos últimos 50 anos.
De O Globo