O primeiro filme que eu vi foi escrito, dirigido e narrado por mim. A fotografia era de outro, não me lembro quem. Explico: costumava, usando um fotograma, uma lente de aumento e uma lanterna de pilha, realizar sessões de cinema em minha casa, quando criança. Até uma certa idade, meus pais não me deixavam ir ao cinema. Isso era suficiente para transformá-lo no objeto mais desejado de tanta curiosidade. Entrava, escondido no prédio onde funcionava o cine-teatro Avenida, durante o dia, um casarão imenso e vazio. Diante da tela, ficava imaginando o que se passava ali de tão perigoso. Acontecia, vez por outra, de nossas invasões encontrar aqui e ali um fotograma perdido. Aquilo bastava pelo filme todo. Mais tarde, juntava os amigos, irmãos e irmãs, projetava o pedaço de filme na parede branca da sala e inventava uma história. Em geral, triste. Não me importava que a careta engraçada de Oscarito não correspondesse ao drama que eu narrava. Afinal, o filme era meu e só bem depois descobri que Oscarito era engraçado.
Esta experiência me acompanha pela vida afora. Até hoje me permito ver qualquer filme com total liberdade diante da história contada na tela. Melhor assim. meu irmão saiu diversas vezes do cinema, irado e brigando pela devolução do seu dinheiro, porque se sentia enganado. Bastava aparecer o leão rugindo, dentro da marca da Metro, para ele achar que estava vendo o mesmo filme, do qual tinham apenas mudado o título. No meu modo de ver, aquele leão rugia, mas também, dependendo do dia, cantava Muié rendera. O primeiro longa-metragem que vi chamava-se Amanhã será tarde demais, com Pier Angeli, e passava-se em um internato de meninas, num lugar qualquer da Itália. Parece-me que ela tentava ou se matava no mar, no final. Não importa. Decidi que ela era salva e fugia com Dunya, a pecadora da estepe, heroína do segundo filme que vi.As possibilidade eram infinitas, e são. Diante da tela iluminada eu quero mais é que a ciência vá para o inferno.
Anos mais tarde, depois que tinha um companheiro de invenção morando na extinta União Soviética. Nos tempos em que aquele país existia, conta-se, as férias dos servidores da Embaixada do Brasil em Moscou eram sorteadas. Punha-se num saco os nomes de todos os diplomatas e agregados, e o felizardo ganhava uns dias de bem-bom num país qualquer de sua escolha. O sorteio em questão ocorreu em pleno inverno, dezenas de graus abaixo de zero congelando o pedaço dos trópicos na capital soviética. Cercado de grande expectativa, porque, decisão por maioria dos votos, o vencedor iria à Suécia para assistir e, depois, contar para todos a história de 2001, uma odisséia no espaço, de Stanley Kubrick. Aquele era um filme que jamais seria exibido na Rússia e a curiosidade de todos era imensa. Quem ganhou? O faxineiro da embaixada, um cearense que, mantendo a tradição de não parar quieto no Ceará, trocara Sobral por Moscou. Todo mundo sabe que cearense jamais se contenta, apenas com o Ceará. Há até quem garanta que, quando os americanos chegaram na lua, encontraram um cearense lá, vendendo ouro. Teria, secretamente, voltado de carona numa das Apolos. Rico. O cearense ganhou, foi para a Suécia e, na volta,diante de uma embaixada silenciosa, ávida, o coração aos pulos de curiosidade, fez suspense. Limpou a gargante, olhou no olho de cada um dos presente e disse: 2001, uma odisséia no espaço. Mais um pigarro e arrematou: "Pra começo de conversa, Deus é um pedaço de pau preto". Não sei como continuou. Esta introdução me basta. É, no meu entendimento, a melhor versão crítica da obra-prima de Stanley Kubrick.
Verdade, mentira? Que importa?É tudo cinema. Orson Welles, provavelmente mentindo, afirma que na verdade: "um filme, além de morto, não está nem muito fresco. Vem numa luta. Fazer um filme leva tempo. O filme que estreía na semana que vem é do ano passado". É um fato. Mas nós, que nos sentamos no escuro para seu velório, sempre o ressuscitamos. E quando isso acontece, que bela eternidade ele nos dá para o que sobrar do dia. Experimente. Pegue uma lanterna, uma lente e projete um fotograma na parede. O rento é the end.
Rio de Janeiro
Jornal do Brasil, 22 de agosto de 1995.
* Do livro Como deixar um relógio emocionado (Editora Scritta)