Se a lei pegar, os efeitos podem vir à América Latina. Os EUA
apoiam a política proibicionista aqui como ninguém. Ela começa a morrer justo
onde nasceu?
Enquanto o mundo inteiro contava os votos de Barack Obama e Mitt Romney, dois
Estados americanos aprovavam leis que podem, em médio e longo prazo, mudar a
política de drogas global de um modo interessante para a América Latina.
A Califórnia legalizou o uso medicinal de maconha em 1996. Desde então,
outros 18 Estados e o Distrito Federal fizeram o mesmo. Mas agora Washington e
Colorado aprovaram a legalização do comércio de maconha para quem quer, digamos,
simplesmente ficar chapado. Aqui e acolá, o que se pode esperar disso?
Para começar, uma briga federal. O comércio de maconha continua crime na
esfera nacional. Será que Obama respeitará a autonomia dos Estados em assunto
tão delicado?
Nas eleições, ele e Romney não se pronunciaram. O chefe da DEA, agência
federal antinarcóticos, também não, apesar da pressão conservadora para que se
colocasse contra a legalização. Havia o temor de que qualquer posicionamento
influenciaria eleitores no pleito principal.
Eleito, é provável que Obama evite conflito direto, pois a autonomia estadual
é sagrada nos EUA. Dar uma "dura" nos Estados sairia politicamente caro,
especialmente com ele tendo sido eleito sem grande vantagem e sem maioria na
Câmara.
Nada impede, porém, que promotores e polícia busquem brechas jurídicas e
burocráticas para impedir, na prática, que a lei entre em vigor. Na Califórnia,
por exemplo, a promotoria ameaçou desapropriar imóveis de quem os alugasse para
o comércio de maconha medicinal -tráfico de drogas, na visão federal. Foi o
suficiente para fechar dezenas desses locais em Los Angeles, epicentro do uso
"terapêutico" da erva.
E não se pode ignorar que o eleitorado de Obama é o mais jovem e
progressista, o mesmo vota pela legalização. Ele também teve amplo apoio de
minorias raciais, a fatia mais encarcerada pelo uso de drogas.
E se a lei realmente pegar? Experiências de descriminalização pelo mundo
mostram que não processar usuários criminalmente não tem efeito direto sobre o
consumo. Em nenhum lugar que fez isso houve boom de consumo. O efeito de
regulamentar o comércio para uso recreativo, no entanto, é mais incerto.
Na Holanda, onde a venda de maconha foi autorizada na prática e sem muito
alarde nos anos de 1970, não houve um boom no uso. Na Califórnia, onde a maconha
medicinal é vendida para qualquer dor de cabeça desde 1998, também não.
Mas quando a Lei Seca americana foi revogada, em 1933, por causa do tesouro
que o tráfico de bebida virou para gangsters, o consumo de álcool escalou
rapidamente. E não podemos ignorar que hoje, álcool e tabaco são as drogas mais
usadas do mundo pois são socialmente mais aceitas -seu caráter lícito certamente
contribui para isso.
Segundo as pesquisas mais recentes, o uso de maconha em Washington tem
crescido em ritmo lento, conforme a média americana. Em Colorado, o consumo
entre adolescentes chegou a diminuir desde a aprovação da maconha medicinal em
2000 -pois é. Se novas pesquisas mostrarem uma mudança radical nessas
tendências, é provável que a legalização seja revogada. Se elas não mudarem
demais, no entanto, a chance de os dois Estados provocarem uma reação em cadeia
é grande.
Entra a América Latina na história: o efeito dominó certamente se alastraria
para além da terra do Tio Sam.
Afinal, os EUA são fundadores e guardiões da política proibicionista
instaurada globalmente a partir do século 20 -e os países latino-americanos são
fieis e compulsórios seguidores. Se questionada dentro do próprio país (e a
primeira dúvida já foi plantada), os EUA não terão mais autoridade para
pressionar diplomaticamente outros países. Especialmente quando continente sofre
como nunca nas mãos do narcotráfico.
Difícil acreditar que nossos governos, mesmo tão servis, aceitem por muito
tempo a obrigação de proibir e reprimir a maconha se parte dos americanos o
toleram e arrecadam impostos com isso. O desenrolar dessa novela em Colorado e
Washington pode fazer a política de drogas vigente no mundo começar a desmoronar
exatamente a partir do lugar em que começou a ser levantada.
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