Certo dia visitei La Chascona, a casa museu do poeta Pablo Neruda (Parral, 1904 - Santiago,1973) no Chile. Está no roteiro dos passeios turísticos de Santiago do Chile. Como todo ponto turístico, a casa é um lugar de captação de recursos da indústria. Usando uma palavra em voga, a imersão no universo de Neruda tem taxa tabelada. Afinal, ao fim, Neruda se reconciliou até com a Coca-Cola.
Todo roteiro da Chascona é orientado por um áudio, que o visitante tem de colar aos ouvidos. Libras ali nem se fala. A narração mecânica, sobre o acervo e compartimentos da vida e casa do poeta, confunde ainda mais os sentidos, diante de todos aqueles detalhes das réstias de vida cotidiana de Neruda. Todos espalhados pela casa, como a obedecer uma lógica atarantada. Interessante é que as coisas parecem estar todas à mostra, diferente da condição que se condena àquelas mais simples, que se guarda em armários fechados como um bom segredo, contrariando seu sentido nato ou sua própria índole.
Neruda foi um poeta profícuo (+ de 30 títulos), combativo defensor da democracia, constantemente ameaçada nesta faixa de terra historicamente manchada de sangue, onde se compartilha a América Latina. Nas décadas de 60 e 70, abaixo do Equador e nos arredores desta linha imaginária, os sobressaltos quase sempre emanavam dos quartéis e atingiam em primeiro lugar os alicerces culturais da sociedade: seus intelectuais, artistas, homens e mulheres arraigados à palavra e espírito livres.
Percorrendo aquela casa, de cômodos labirínticos, lembrava trechos que me ficaram na memória do Confesso que Vivi, vade mecum poético dos universitários da década de 70/80. Certa vez Neruda e o poeta espanhol Frederico Garcia Lorca (morto pelo ditador Franco em 1936) estavam em um jantar que juntava um cordão poético de luminares. Bancado pela carreira diplomática que Neruda integrava, a literatura era servida entre cristais e porcelanas. Foi então que tiveram a ideia de fazer um discurso al alimón, em que um completava a frase iniciada pelo antecessor. Lorca e Neruda se alternavam na tessitura da oratória, cujo tema o tempo passou a borracha na minha memória.
Sua convivência com a mulher/companheira Matilde, sua coleção de mapas, as coisas da cozinha, do quarto de dormir e alcova. Está tudo lá, na Chascona. De uma parede de vidro tentei olhar o mar, não vi. Há uma associação indelével do mar com Neruda. Tanto entre os chilenos com seus roteiros turísticos, quanto entre os poetas do mundo, o Pacífico é visto como o pano de fundo de toda inspiração do poeta.
De uma amiga da universidade - Aracelli – ganhei uma antologia do poeta chileno. Era uma edição da José Olympio Editora, de 1963, dez anos antes de Pablo Neruda deixar a terra e se embrenhar na memória do mundo. Aracelli morava em um dos poucos edifícios da São Luís dos anos 70. Na dedicatória escreveu “..para escrever me fizeram falta pelo mundo as goteiras. As goteiras são o piano da minha infância”, recortando o poeta. Ainda guardo o livro comigo. Dela, as lembranças e os sentimentos provocados pelas canções de Dorival Caymmi.
*Este texto foi provocado por um artigo do imortal Antonio Carlos Lima, que me avivou a poesia de Neruda.