Doca Street e Ângela Diniz |
Em 30 de dezembro de 1976, um crime chocou o Brasil. No cenário paradisíaco de Armação de Búzios, na Região dos Lagos, o empresário Raul Fernando do Amaral Street, o Doca Street, disparou quatro tiros contra o rosto da namorada, a socialite Ângela Diniz — o último, quando ela já estava caída. O assassinato aconteceu na casa dos dois, na Praia dos Ossos, em meio a discussões acaloradas em que, segundo testemunhos, Ângela Diniz pediu o fim do relacionamento.
A brutalidade já seria suficiente para causar indignação. Mas teve mais. Defendido pelo criminalista Evandro Lins e Silva, Doca foi condenado em 1979 a apenas dois anos de prisão (com direito a suspensão condicional da pena), sob a tese da “legítima defesa da honra”. Ângela foi apresentada como uma mulher promíscua, e Doca, como a verdadeira vítima. A decisão, um marco sombrio na história da violência contra mulheres, inspirou séries de TV e gerou inúmeros movimentos e campanhas. Em julgamento posterior, Doca foi condenado a 15 anos de prisão.
Quase meio século depois do crime da Praia dos Ossos (e três meses depois da morte de Doca Street, aos 86 anos), o Supremo providenciou um enterro de luxo à “legítima defesa da honra”. Ao julgarem ação movida pelo PDT, os 11 ministros decidiram por unanimidade que a tese não pode ser aplicada em julgamentos no tribunal do júri como argumento de defesa em casos de feminicídio, por contrariar princípios da Constituição.
O relator do caso, ministro Dias Toffoli, afirmou que a tese corresponde a recurso “desumano e cruel”, usado “para imputar às vítimas a causa de suas próprias mortes ou lesões”, contribuindo para a naturalização da cultura da violência contra as mulheres no Brasil.
É certo que, nesses 44 anos, o país mudou. Foram criadas delegacias especializadas, vieram as leis Maria da Penha (2006) e do Feminicídio (2015), inúmeros movimentos surgiram. Ao mesmo tempo, nada mudou. Assassinatos covardes como o de Ângela Diniz acontecem todos os dias. Basta trocar os cenários e mudar os nomes das personagens — Cláudia Lessin, Mônica Granuzzo, Daniella Perez, Tatiane Spitzner, Viviane Vieira do Amaral.
É louvável a decisão do Supremo de remover o entulho anacrônico dos tribunais, de modo a impedir que criminosos se beneficiem de brechas da lei para ficar impunes. Mas a sociedade precisa avançar. Tanto quanto punir os autores de feminicídio, é essencial impedir que esses crimes aconteçam com a regularidade de um folhetim. Mulheres são assassinadas mesmo sob medidas protetivas, como foi o caso da juíza Viviane do Amaral, morta na frente das filhas.
Há que criar políticas públicas — e as patrulhas Maria da Penha são um bom exemplo — para estancar a tragédia que nos avilta. Não há espaço numa sociedade civilizada para esse tipo de comportamento ignóbil. Como se argumentava numa época em que as redes sociais eram os muros pichados da cidade, “quem ama não mata”. E, se mata, tem que pagar pelo crime.