O pranto de Marighella e as queixas de Dolores Duran
Lendo a biografia de Dolores Duran, escrita por Rodrigo Faour, revivi toda a minha frustração por não ter podido encontrar essa cantora e compositora excepcional quando de minha vinda para o Rio com Bethânia. Dolores tinha morrido, aos 29 anos, cinco anos antes de eu chegar aqui com minha irmã. Na noite do dia em que ela morreu, eu e Chico Motta, meu melhor amigo de infância e adolescência (e irmão para sempre), fizemos uma homenagem à sua memória: percorremos as ruas de Santo Amaro na madrugada, em silêncio, tendo inclusive nos separado, cada um para sua casa quando chegamos à esquina mais próxima das duas, sem dizer nem “té manhã”. O fato é que estávamos profundamente comovidos com a notícia sobre aquela mulher que tinha cantado “Não se avexe não” e escrito “Por causa de você”.
Chico sabia que eu a tinha visto em carne e osso, no auditório da Rádio Nacional, três anos antes. Mas quando isso se deu eu tinha 13 anos: admirava a cantora e sentia simpatia extrema pela pessoa, apenas já quase sabia que a amaria tanto. Seja como for, a figura vital e engraçada que surge da pesquisa de Faour não me surpreende: a “fossa” dos sambas-canções era uma exigência, por assim dizer, natural; a letra de “Estrada do Sol” representava o mais radical contraste com essa exigência; “Por causa de você” é exceção pioneira de canção de amor otimista em português; o canto cômico dos baiões de Chico Anysio e dos sambas de Billy Blanco — assim como a voz heterônima das canções americanas que ela gravou — provinha de uma alma amante da vida.
Uma cena me emocionou de forma única na narrativa (sempre em tom quase exageradamente informal) de Faour: a presença de Dolores numa palestra de Marighella em reunião organizada por Jorge Goulart e Nora Ney. Esse casal — de quem tive a sorte de me fazer amigo nos anos que se seguiram à explosão de Bethânia no cenário nacional, amizade que perdurou até minha prisão e exílio em 1968/69 — era comunista e atuava no ambiente de músicos e artistas como divulgadores e propagandistas do projeto do socialismo mundial. Dolores era simpatizante da causa. Por essa razão (e por seus dotes vocais e cênicos) foi convidada a unir-se ao grupo de músicos brasileiros que iriam (inclusive por interesse do presidente JK) se apresentar na União Soviética.
Imagino essa sala na Zona Sul do Rio em que os dois mulatos coincidiram. Já contei aqui que Marighella chorou copiosamente ao tomar conhecimento dos horrores do stalinismo, mas, como se sabe, ele nunca abandonou o sonho comunista e terminou morrendo por ele. Dolores (que, tal como ele, na época nem tinha sua condição de mulata como informação que viesse pegada a seu nome) não era ligada diretamente ao Partidão. Voltou da União Soviética indignada com o que viu. E era a URSS de Kruschev. Um texto de Jorge Goulart defendeu o mundo comunista das acusações de Dolores. E no depoimento que dá a Faour critica branda mas maliciosamente Dolores: diz que ela reagiu mal à experiência russa por preferir beber na embaixada americana a fazer os passeios e visitas propostos pelos organizadores soviéticos. As entrevistas de Dolores publicadas à época soam um tanto irresponsáveis. A má vontade com o que viu pode confirmar algo daquilo que Goulart insinua: que ela, identificada com o mundo decadente do Ocidente capitalista, ouviu a versão corrente na embaixada dos Estados Unidos. A acusação que vem velada na fala de Goulart, mas tem semelhança com o que esquerdistas de então e de hoje dizem de críticos e dissidentes de países socialistas. Segundo Faour, Paulo Moura (que também voltou da Rússia antes do previsto) compartilhava do desconforto de Dolores.
Imagino essa moça talentosa e boêmia, aos 27 anos, vendo a vida acinzentada do socialismo do Leste europeu. Orgulho-me de que ela tenha sido desabrida ao expor sua decepção na volta. Mas sempre vejo a complexidade de situações como essa. Os membros do Conjunto Farroupilha dizem que adoraram tudo na URSS e que Dolores estava fora de sintonia. Nora Ney nunca mais foi sua amiga. O socialismo jamais desaparecerá do horizonte: lutamos com o mundo pela justiça e pela grandeza. Mas o pranto de Marighella e as queixas de Dolores continuam tendo muito a dizer. Dolores, uma das maiores artistas que temos tido. Uma suburbana carioca descendente de nordestinos semi-iletrados que exibiu de modo exuberante a potência criativa deste país. Quando penso nesse conjunto de coisas, em Dolores e Marighella na mesma sala, em Nora e Jorge versus Paulo Moura, sinto o quanto o Brasil tem que fazer. Capto a energia de uma reviravolta suave ou brusca mas imensa que devemos cobrar deste país.
De O Globo
Lendo a biografia de Dolores Duran, escrita por Rodrigo Faour, revivi toda a minha frustração por não ter podido encontrar essa cantora e compositora excepcional quando de minha vinda para o Rio com Bethânia. Dolores tinha morrido, aos 29 anos, cinco anos antes de eu chegar aqui com minha irmã. Na noite do dia em que ela morreu, eu e Chico Motta, meu melhor amigo de infância e adolescência (e irmão para sempre), fizemos uma homenagem à sua memória: percorremos as ruas de Santo Amaro na madrugada, em silêncio, tendo inclusive nos separado, cada um para sua casa quando chegamos à esquina mais próxima das duas, sem dizer nem “té manhã”. O fato é que estávamos profundamente comovidos com a notícia sobre aquela mulher que tinha cantado “Não se avexe não” e escrito “Por causa de você”.
Chico sabia que eu a tinha visto em carne e osso, no auditório da Rádio Nacional, três anos antes. Mas quando isso se deu eu tinha 13 anos: admirava a cantora e sentia simpatia extrema pela pessoa, apenas já quase sabia que a amaria tanto. Seja como for, a figura vital e engraçada que surge da pesquisa de Faour não me surpreende: a “fossa” dos sambas-canções era uma exigência, por assim dizer, natural; a letra de “Estrada do Sol” representava o mais radical contraste com essa exigência; “Por causa de você” é exceção pioneira de canção de amor otimista em português; o canto cômico dos baiões de Chico Anysio e dos sambas de Billy Blanco — assim como a voz heterônima das canções americanas que ela gravou — provinha de uma alma amante da vida.
Uma cena me emocionou de forma única na narrativa (sempre em tom quase exageradamente informal) de Faour: a presença de Dolores numa palestra de Marighella em reunião organizada por Jorge Goulart e Nora Ney. Esse casal — de quem tive a sorte de me fazer amigo nos anos que se seguiram à explosão de Bethânia no cenário nacional, amizade que perdurou até minha prisão e exílio em 1968/69 — era comunista e atuava no ambiente de músicos e artistas como divulgadores e propagandistas do projeto do socialismo mundial. Dolores era simpatizante da causa. Por essa razão (e por seus dotes vocais e cênicos) foi convidada a unir-se ao grupo de músicos brasileiros que iriam (inclusive por interesse do presidente JK) se apresentar na União Soviética.
Imagino essa sala na Zona Sul do Rio em que os dois mulatos coincidiram. Já contei aqui que Marighella chorou copiosamente ao tomar conhecimento dos horrores do stalinismo, mas, como se sabe, ele nunca abandonou o sonho comunista e terminou morrendo por ele. Dolores (que, tal como ele, na época nem tinha sua condição de mulata como informação que viesse pegada a seu nome) não era ligada diretamente ao Partidão. Voltou da União Soviética indignada com o que viu. E era a URSS de Kruschev. Um texto de Jorge Goulart defendeu o mundo comunista das acusações de Dolores. E no depoimento que dá a Faour critica branda mas maliciosamente Dolores: diz que ela reagiu mal à experiência russa por preferir beber na embaixada americana a fazer os passeios e visitas propostos pelos organizadores soviéticos. As entrevistas de Dolores publicadas à época soam um tanto irresponsáveis. A má vontade com o que viu pode confirmar algo daquilo que Goulart insinua: que ela, identificada com o mundo decadente do Ocidente capitalista, ouviu a versão corrente na embaixada dos Estados Unidos. A acusação que vem velada na fala de Goulart, mas tem semelhança com o que esquerdistas de então e de hoje dizem de críticos e dissidentes de países socialistas. Segundo Faour, Paulo Moura (que também voltou da Rússia antes do previsto) compartilhava do desconforto de Dolores.
Imagino essa moça talentosa e boêmia, aos 27 anos, vendo a vida acinzentada do socialismo do Leste europeu. Orgulho-me de que ela tenha sido desabrida ao expor sua decepção na volta. Mas sempre vejo a complexidade de situações como essa. Os membros do Conjunto Farroupilha dizem que adoraram tudo na URSS e que Dolores estava fora de sintonia. Nora Ney nunca mais foi sua amiga. O socialismo jamais desaparecerá do horizonte: lutamos com o mundo pela justiça e pela grandeza. Mas o pranto de Marighella e as queixas de Dolores continuam tendo muito a dizer. Dolores, uma das maiores artistas que temos tido. Uma suburbana carioca descendente de nordestinos semi-iletrados que exibiu de modo exuberante a potência criativa deste país. Quando penso nesse conjunto de coisas, em Dolores e Marighella na mesma sala, em Nora e Jorge versus Paulo Moura, sinto o quanto o Brasil tem que fazer. Capto a energia de uma reviravolta suave ou brusca mas imensa que devemos cobrar deste país.
De O Globo