Não foi a loucura que tornou Bispo do Rosário o que ele era; o artista cria
apesar da doença, e não graças a ela
Foi uma experiência muito especial a visita que fiz à mostra de trabalhos de
Emygdio de Barros e Raphael Domingues, realizada há pouco no Instituto Moreira
Salles, no Rio. Emygdio e Raphael surgiram no ateliê de pintura do Serviço de
Terapêutica Ocupacional do Centro Psiquiátrico Nacional, criado pela doutora
Nise da Silveira, em 1942.
Trata-se de trabalhos em papel, tanto de Raphael quanto de Emygdio, que foi
sobretudo pintor. As obras deste são guaches sobre papel, mas com a mesma
qualidade de tudo que ele criou. Eu, que conheço esses trabalhos desde os anos
1950, voltei a me encantar e a me surpreender ao revê-los agora.
Emygdio consegue nesses guaches manter a mesma fulguração cromática que
caracteriza os seus quadros pintados a óleo. Já os trabalhos de Raphael ali
expostos eram os mesmos desenhos que já conhecia e admirava. A limpidez de seu
traço e a concepção inesperada das figuras fazem deles criações inigualáveis.
Uma de suas singularidades é o fato de que as figuras são realizadas no
movimento contínuo de uma mesma linha que magicamente as configura.
Lembro-me da batalha que se travou, naquela época, em torno dos trabalhos dos
internados do Engenho de Dentro -bairro onde se situa o CPN- quando Mário
Pedrosa escreveu dizendo que as obras que eles produziam eram arte no pleno
sentido da palavra.
Os críticos de arte, na sua maioria, manifestaram-se contra essa afirmação de
Pedrosa. Segundo eles, arte de louco não é arte. E não só os críticos; muitos
artistas também pensavam assim, e artistas importantes. Mas Pedrosa estava
certo, e sua opinião prevaleceu com o passar dos anos.
Hoje, ninguém mais nega o valor das obras daqueles artistas, que sequer
teriam pintado ou desenhado não fora a clarividência de Nise da Silveira que,
contrariando a visão que se tinha do esquizofrênico, criou o Serviço de
Terapêutica Ocupacional no Centro Psiquiátrico Nacional e o manteve apesar de
tudo.
Ao criar especificamente os ateliês de pintura e modelagem, abriu caminho
para a revelação da criatividade dos pacientes que os frequentavam, cujas obras
hoje integram o acervo artístico brasileiro. Foi graças a Nise e a Pedrosa,
portanto, que, anos depois, as criações inusitadas de Arthur Bispo do Rosário
tiveram o reconhecimento que tiveram e se consagraram como expressão artística
de alto valor.
A relação entre arte e loucura ainda hoje, no entanto, é motivo de discussão,
mesmo porque há quem afirme que não existe loucura e, sim, como disse Antonin
Artaud, "inumeráveis estados do ser".
O que se chama loucura seria um desses estados. Nessa linha de pensamento, a
doutora Nise da Silveira criou o Museu de Imagens do Inconsciente, cujo acervo
deveria preservar as obras desses artistas como material de estudo do universo
psíquico. Por isso mesmo, proibiu que as obras criadas naquele ateliê do Serviço
de Terapêutica fossem comercializadas.
A negação da existência de doença mental parece-me discutível. Minha
experiência pessoal nesse terreno ensinou-me o contrário. Certamente, uma pessoa
que ouve vozes inexistentes e chega a cometer agressões contra quem está ao seu
lado porque uma dessas vozes assim o mandou não age dentro do que se considera
normalidade. Isso sem falar no estado de inquietação e angústia que lhe torna a
vida insuportável.
Não resta dúvida de que os remédios neurolépticos reduzem essa ansiedade e
chegam mesmo a eliminá-la, conforme o caso. Deve-se, porém, entender que a
doença mental é uma doença igual a outras, uma vez que o cérebro, como qualquer
outro órgão do corpo humano, pode eventualmente funcionar mal.
Há outro aspecto dessa relação entre arte e loucura que deve ser melhor
entendido. Se naquela época se negava a arte do doente mental, alegando-se que
louco não podia produzir arte, passou-se depois a afirmar o oposto, ou seja, que
a loucura torna o artista um gênio. Outro equívoco.
Não foi a loucura que tornou Arthur Bispo do Rosário o artista que ele era.
Na verdade, o artista esquizofrênico cria apesar da doença, e não graças a ela.
Prova disso é o fato de que, embora dezenas de pacientes frequentassem o ateliê
de arte do CPN, só alguns poucos se revelaram artistas de fato.
Da Folha