domingo, 7 de outubro de 2012

Aquém da razão - FERREIRA GULLAR

 
A religião, por lidar mais com crença que com razão, pode ser campo propício à indignação sem limites
 
Longe de mim o propósito de desconsiderar a crença religiosa das pessoas, muito embora não seja eu religioso. E não a desconsidero porque sei a importância que tem para elas. Se quisermos constatá-la, bastará observar que os últimos séculos, marcados pelo domínio da ciência e do pensamento objetivo, não lograram pôr fim à religiosidade dos povos que, em sua maioria, mantêm-se fiéis às suas convicções religiosas.
    Haverá para isso várias explicações, mesmo porque são muitas as religiões que existem, algumas delas milenares, e cada uma com características específicas e modo próprio de explicar a existência e entender os valores espirituais. Creio, porém, que todas elas respondem a uma necessidade humana fundamental: dar sentido à existência.
    E aí reside a explicação de sua sobrevivência, muito embora a cultura tenha mudado tanto e tenha o homem descoberto as leis que regem tanto a matéria inorgânica quanto as dos organismos vivos, tanto as leis do mundo infra-atômico quanto do macrocosmo.
    Há, porém, algumas perguntas para as quais a ciência não tem resposta, como, por exemplo, por que existe algo em vez de nada? Teve o mundo começo ou ele sempre existiu? Que sentido tem a vida humana, se todos nós acabamos para sempre? No entanto, para quem acredita em Deus, todas essas perguntas estão respondidas. Ou sequer são formuladas.
    No entanto, uma coisa é a consideração conceitual dessas questões e outra é como elas se colocam na realidade. Agora mesmo assistimos, no mundo islâmico, a sucessivas manifestações de fúria, como reação a um vídeo idiota, que ridiculariza o profeta Maomé.
    É compreensível que as pessoas que professam o islamismo tenham se sentido agredidas e desrespeitadas no que mais prezam e cultuam. Não obstante, a tradução dessa indignação em atos de vandalismo -incêndio de embaixada, consulados, morte de pessoas- parece exceder todos os limites razoáveis.
    A verdade, porém, é que aconteceram e não se limitaram a um ou dois episódios incontroláveis. De fato, essa indignação furiosa se estendeu por várias semanas e por vários países. Mas por que o objetivo da fúria são embaixadas norte-americanas, se o vídeo não foi obra do governo dos Estados Unidos?
    Parece impossível ter uma resposta única para essa pergunta. Uma coisa, porém, parece óbvia: o ressentimento de certas camadas islâmicas contra os norte-americanos. Isso é um fato, uma vez que o apoio dos Estados Unidos a Israel é visto como uma demonstração de hostilidade, não apenas ao povo palestino, como a toda a nação árabe muçulmana. Esse ódio aos ianques os levaria a admitir que o vídeo terá sido fruto de uma iniciativa governamental para desmoralizar o islamismo. Ninguém, com um mínimo de lucidez, acreditaria nisso. Tampouco justificaria a fúria e o número daqueles protestos.
    A nosso ver, o que pode explicá-los é o fundamentalismo religioso que transforma uma indignação razoável numa fúria sagrada implacável, sem qualquer respeito pelo outro, desde que seja visto como antagonista a minha crença. Destruir e matar, se feito em nome de Deus, estaria certo.
    Isso me faz lembrar uma afirmação de Bin Laden, pouco depois da destruição das Torres Gêmeas. O jornalista que o entrevistava, perguntou-lhe se não estava errado um atentado como aquele que matou milhares de inocentes, quando o Corão considera o assassinato de inocentes um grave pecado. A sua resposta foi: "Os inocentes que morreram eram os inocentes deles". Ou seja, segundo essa visão fundamentalista, basta não acreditar em Alá para ser culpado. Só que ali morreram, inclusive, muçulmanos.
    Certamente, essa não é a opinião da maioria das pessoas que professam a religião islâmica e que, respeitando a opção religiosa, admitem a diversidade de crenças. Não são elas que vão para as ruas incendiar embaixadas e matar infiéis. Mas a religião, nesse particular, por lidar mais com a crença do que com a razão, pode ser campo propício à indignação sem limites.
     Aqui no meu canto, sem nada que me proteja da bala perdida, não tenho dúvida de que avaliar os fatos com isenção e lucidez nos torna modestamente mais humanos.
Da Folha