domingo, 4 de abril de 2021

O que a ciência sabe sobre Jesus Cristo



Um judeu de origem camponesa segue arrebatando multidões ao redor do mundo com suas palavras sobre um reino de paz e justiça dois milênios após sua morte. Para a ciência, ainda há mais perguntas do que respostas sobre ele. Contudo, historiadores e arqueólogos são unânimes ao constatar que Jesus de Nazaré foi um personagem histórico real por aqui e inspirou a maior religião do planeta.

Tal qual Sócrates, Jesus não deixou nada escrito. Aliás, alguns historiadores acreditam que ele era analfabeto e falava somente aramaico, embora pudesse saber de cor todo o Torá, os escritos sagrados do judaísmo, tendo em vista o predomínio da cultura oral.

O fato é que a multiplicidade de relatos sobre o judeu Yeshua (Jesus, em hebraico) chama atenção. Autores que nunca se leram ou sequer foram contemporâneos fazem afirmações que coincidem sobre Jesus. Quem explica é o historiador André Chevitarese, estudioso há mais de 30 anos do chamado Jesus histórico, estudo que separa o homem de carne e osso do messias religioso.

“Paulo nunca leu Marcos, Marcos nunca leu Paulo. João Evangelista nunca leu Paulo, mas também nunca leu Marcos. No entanto, esses três autores falam coisas sobre um quarto, que é Jesus, que batem em gênero, número e grau”, comenta o professor do Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Reconstruir a vida do pregador judeu que viveu na Galileia é um desafio descomunal. Porém, a despeito do grande distanciamento temporal entre a personagem histórica de Jesus, os achados reunidos até o momento suplantam qualquer dúvida, reforça a historiadora Silvia Siqueira, docente no Programa de Pós-Graduação em História, Culturas e Espacialidades (PPGHCE) e no curso de História da Universidade Estadual do Ceará (Uece).

“As teses, minoritárias e alheias ao mundo acadêmico, segundo as quais Jesus é apenas um mito, na medida em que se mostra efetiva e documentadamente vívido, não têm confirmação na pesquisa histórica”, completa.

Os evangelhos canônicos — Mateus, Marcos, Lucas e João — são a principal fonte do que se sabe hoje sobre Jesus. Todos foram escritos em grego cerca de 30 ou 40 anos depois do que se considera que ele morreu.

Sob a perspectiva de legitimidade histórica, os textos evangelistas estão sujeitos a análise crítica em relação a seus vieses, autores e contextos, segundo considera o professor Daniel Justi, do mestrado em história na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa).

“Documentos, registros de memória têm uma legitimidade por si só, e a História quando os toma precisa submeter isso a teóricos e metodologias para entender a formação desse contexto. E aí se consegue, então, perceber a validade da natureza histórica desses registros”, explica Daniel.

Reconstruir a vida do pregador judeu que viveu na Galileia é um desafio descomunal. Porém, a despeito do grande distanciamento temporal entre a personagem histórica de Jesus, os achados reunidos até o momento suplantam qualquer dúvida, reforça a historiadora Silvia Siqueira, docente no Programa de Pós-Graduação em História, Culturas e Espacialidades (PPGHCE) e no curso de História da Universidade Estadual do Ceará (Uece).

“As teses, minoritárias e alheias ao mundo acadêmico, segundo as quais Jesus é apenas um mito, na medida em que se mostra efetiva e documentadamente vívido, não têm confirmação na pesquisa histórica”, completa.

Os evangelhos canônicos — Mateus, Marcos, Lucas e João — são a principal fonte do que se sabe hoje sobre Jesus. Todos foram escritos em grego cerca de 30 ou 40 anos depois do que se considera que ele morreu.

Fora dos textos que anunciam as boas novas (evangelho significa “boa notícia”, em grego), outros autores não cristãos também testemunham a fama de Jesus. O mais proeminente deles é o historiador judeu Flávio Josefo, nascido por volta da época em que se acredita que Jesus teria morrido e que faz uma referência direta a Jesus como um homem “sábio”, embora recaiam suspeitas de adulteração por copistas cristãos em parte de seu texto.

De acordo com o arqueólogo Pedro Paulo Funari, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) com experiência em História Antiga e Arqueologia Histórica, apesar da possível distorção textual, Josefo apresenta a evidência mais direta da existência de Jesus. “Não parece que ele apenas reproduz o que os seguidores de Jesus diziam, mas conhecimento de Jesus independente dos cristãos”, constata.

Josefo ainda menciona outros personagens que conviveram com Jesus: Tiago, citado na Bíblia como um dos irmãos dele, e João Batista, responsável pelo batizado Jesus, segundo o texto bíblico. Outros autores como Tácito, Plínio e Suetônio refletem mais os cristãos de sua época em seus escritos.

Condenados à crucificação por Roma eram geralmente presos por cordas e não pregados, como a Bíblia conta que ocorreu com Jesus. Além disso, os romanos costumavam deixar os corpos sem sepultá-los. Faltavam, portanto, evidências que mostrassem plausibilidade na narrativa bíblica.

Isso mudou em junho de 1968, quando o arqueólogo israelense Vassilios Tzaferis encontrou em Jerusalém, num lugar chamado Givat Hamtivar, cinco ossuários, um entre os quais estava o de um homem que tinha cerca de 1,65 metro de altura e por volta 25 anos.

Seu calcanhar direito havia sido perfurado por um prego de aproximadamente 10 centímetros. Essa descoberta, considerada raríssima, permite dizer que crucificados poderiam ser pregados e havia permissão de enterramento, mesmo excepcionalmente. Ambos os aspectos são mencionados no caso de Jesus, mas careciam de exemplos até então.

Achados arqueológicos como o ossuário do crucificado confirmam o relato evangelista. Ruínas de aldeias judaicas, ossuários e objetos dão pistas sobre os contextos histórico, cultural, social e religioso da época do nazareno, segundo elucida o arqueólogo Pedro Paulo Funari, da Unicamp.

“As evidências são indiretas, como uma inscrição que menciona Pôncio Pilatos, ou um barco de pesca, que mostra como era um Jesus tal como mencionado nos Evangelhos. Como no caso de 99,9% das pessoas que viveram no passado sem vestígios identificados, inscrição ou outro rastro”, detalha.

O arqueólogo e teólogo Rodrigo Silva, professor do Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp), acrescenta que seria incoerente limitar as investigações sobre a Antiguidade à busca de provas materiais concretas.

“Você não vai investigar a história de Júlio César [morto em 44 a.C] com os mesmos critérios científicos que se investiga um assassinato cometido no mês passado. A História Antiga tem de ser analisada com métodos próprios”, argumenta.

Outra descoberta inestimável para a arqueologia ocorreu quando uma longa estiagem baixou drasticamente o nível do Mar da Galileia, em Israel, em janeiro de 1986. Um barco pesqueiro feito de madeira barata, com cerca de 8 metros de comprimento e três de largura, foi encontrado incrivelmente bem preservado no meio da lama.

Por meio do exame de carbono-14 da madeira, ficou comprovado que o barco é datado do primeiro século. A embarcação de dois mil anos bate com as descrições daqueles utilizados pelos pescadores galileus que conviveram com Jesus.

Pesquisadores apontam pelo menos dez descobertas arqueológicas notáveis que confirmam o relato do Novo Testamento e revelam detalhes sobre personagens, circunstâncias e aspectos da vida do nazareno mencionadas no texto bíblico.

 A vida do nazareno

 

“Ele, de fato, existiu. Agora, o que se diz sobre ele, bom, aí é passível de discussão”, provoca o historiador André Chevitarese, da UFRJ. A noite feliz em Belém, por exemplo, pode não ter acontecido porque Jesus veio ao mundo em Nazaré, segundo ele.

De acordo com o pesquisador, a narrativa evangelista buscaria relacionar Jesus com Belém em uma alusão à cidade natal do rei Davi, de cuja descendência era esperado o novo messias para libertar os judeus da dominação romana.

Seja como for, a simplicidade do nascimento de Jesus, popularizada pela cena da manjedoura, não deve estar muito distante da modéstia encontrada na pequena aldeia da Galileia com casas de pedra e telhados de palha.

A data do seu nascimento também pode causar estranheza para quem não está familiarizado com o assunto. Jesus nasceu no fim do reinado de Herodes, portanto, entre os anos 6 e 4 a.C. Sim, Cristo nasceu antes do marco considerado pelo calendário cristão, conforme os historiadores.

Ele também não era filho único. Os Evangelhos citam Tiago, José, Simão e Judas como irmãos de Jesus, sendo que há também uma menção a Tiago, como irmão de Cristo nos textos do historiador judeu Flávio Josefo.

E esqueça as imagens do eurocêntrico Jesus loiro, branco e de olhos azuis. Sua aparência física devia ser mais como a dos judeus de seu tempo: pele e cabelos escuros. Porém, seus seguidores não se importaram com sua fisionomia. Logo, não registraram por escrito.

As suas palavras, por outro lado, repercutem até hoje. Parábolas simples de um judeu camponês sobre a vida no campo — vide a história do joio e do trigo ou das sementes que caíram em diferentes terrenos — atraíram os ouvidos do povo. Em contrapartida, a proclamação de um reino de igualdade e fartura para todos incomodou Roma. Isso é o que leva Jesus a ser crucificado entre os anos 30 a 35 a.C.

O professor Lair Amaro, também do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da UFRJ (PPGHC/IH), afirma que Jesus, como outros em seu tempo, liderou um movimento messiânico popular. “Seu sonho era de que Deus voltasse a reinar e expulsasse os romanos de sua terra. O diferencial de sua mensagem é que ele não aceitou a cumplicidade das elites judaicas para com o Império e conclamou o povo mais simples a resistir a esse estado de coisas sem recorrer à violência”, comenta.

Morte na cruz

 

Uma morte política e marginal. É assim que os historiadores encaram a crucificação de Jesus. Naquela época, a pena da cruz era reservada somente aos não-romanos e prioritariamente aos revoltosos, categoria na qual o nazareno se encaixava em decorrência de seus discursos subversivos.

Os evangelhos dão conta de que Jesus é preso por ordem de Caifás, o sumo sacerdote, depois da celebração da Última Ceia com os apóstolos. Na sequência, é levado perante o Sinédrio, onde reafirma ser o Filho de Deus. Após passar por Pôncio Pilatos, prefeito da Judeia, é levado para ser crucificado.

Segundo o professor André Chevitarese, da UFRJ, é provável que a captura e crucificação de Jesus tenha se dado em curto espaço de tempo. “Jesus é preso em uma antivéspera de Páscoa e imediatamente morto. Imagina Jerusalém abarrotada de judeus. Como é que vão botar um judeu carregando uma cruz? Isso aí é um convite para uma revolta”, considera. 

O arqueólogo e historiador Pedro Paulo Funari adiciona que “a Via Crucis em Jerusalém foi inventada muito depois e não tem relação com como teria sido mesmo a caminhada de Jesus em direção à crucificação.” Anualmente, a tradição católica celebra a Paixão de Cristo, rememorando desde a entrada de Jesus em Jerusalém até sua morte e ressurreição, mas a comemoração foi estabelecida somente no século III durante o Concílio de Niceia no ano de 325 d.C.

Páscoa no calendário judaico comemora a saída dos judeus do Egito, simbolizando a passagem da escravidão para a liberdade. A festa de caráter político reunia milhares de pessoas, sendo também uma forma de sonhar com a libertação dos romanos.

Longe de ter sido um grande evento, a crucificação de Jesus dificilmente teria espaço em um jornal da época, se existisse algum. “Na geração seguinte a Jesus ter morrido, um autor de nome Paulo, nas suas cartas, está dizendo que a morte de Jesus foi sacrificial. Então deixa de ser uma morte política e passa a ser uma morte religiosa, e isso você só vai acreditar se você tiver fé”, conclui Chevitarese.

À medida que sua mensagem política de oposição ao Império foi domesticada e o significado de morte por crucifixão foi ressignificado, o movimento que começou com Jesus deixou de ser visto como uma ameaça e pode ser incorporado ao corpo religioso romano.

Um passado irremediavelmente perdido

 

Tudo o que se sabe sobre Jesus de Nazaré depende “das memórias e das recepções dessas memórias pelos adeptos do seu movimento ou de personagens que sequer chegaram a conhecê-lo”, atenta o historiador Lair Amaro, da UFRJ. Na percepção dele, “o Jesus da História está irremediavelmente perdido para nós” e há questões “que ficarão para sempre sem resposta.”

A pesquisa pela historicidade de Jesus começou ainda no século 18, despertada pelas ideias iluministas. De lá para cá, porém, as conquistas obtidas equivalem apenas “ao contorno de uma sombra”, ainda muito distante da personagem que tem como alvo, segundo avalia o historiador Daniel Justi, professor da Unifesspa.

“Ainda temos perguntas para serem respondidas: Jesus era visto como um grande mestre de sabedoria ou ele era, de fato, um ativista político que reivindicava melhoria de vida para o povo? Nós temos algumas ideias, mas a gente não tem a precisão disso”, pontua.

Como obstáculos para o avanço dessas pesquisas, além da falta de acessibilidade às principais obras de referência geralmente centralizadas nos Estados Unidos e Europa, Justi cita a situação de “precarização e sucateamento do ensino e da pesquisa” no Brasil.

O arqueólogo e teólogo Rodrigo Silva, da Unasp, acredita ainda que eventos como a queima da biblioteca de Alexandria e a destruição de Jerusalém no ano 70 d.C. representam um prejuízo incalculável para a historiografia que tenta recuperar a história de Jesus.

“Tudo isso provocou uma perda inestimável de manuscritos e textos do passado e hoje nós tentamos reconstruir um quebra-cabeça de mil peças tendo apenas cinquenta ou sessenta delas”, compara.

Mesmo com os entraves, o professor Pedro Paulo Funari, assegura que a busca do Jesus Histórico se justifica pela relevância do cristianismo para a História sob um viés científico. “Nunca se sabe o que a Arqueologia irá revelar sobre o passado e, neste caso, sobre a época de Jesus, mas sempre há novidades que ajudam a compreender melhor”, estima.

A procura pelo judeu da Galileia ainda apresenta numerosas lacunas e deve continuar sendo orientada pelos métodos e técnicas da História, mas a professora Silvia Siqueira, da Uece, ressalta que isso não diminui o que representa o Jesus da espiritualidade. “São abordagens diferentes que podem ser vividas pacificamente. O Jesus Histórico não precisa destruir o Cristo”, afirma.

De O Povo