Todos repetem a frase 'é proibido proibir', da canção em que ecoei as paredes de Paris em 68 — que por sua vez ecoavam algum surrealista do início do século XX
O ministro Marco Aurélio Mello me chamou de jurista. Jurista, eu? Ele teve a argúcia de acrescentar imediatamente “baiano” ao título que me concedeu. Percebi em tudo um tom carinhoso, mas agora só se quer ver ironias ferinas e desavenças. Todos repetem a frase “é proibido proibir”, da canção em que ecoei as paredes de Paris em 68 — que por sua vez ecoavam algum surrealista do início do século XX. Sobre ela já fiz longa reflexão em texto de resposta a Ariano Suassuna, quando este escreveu uma tardia catilinária contra o tropicalismo. Não vou repeti-la aqui: quem quiser saber que procure em “O mundo não é chato”. Aliás, a primeira coisa que me ocorreu quando li o ministro sobre mim foi brincar com o fato de que ele é mais moço do que eu: as boas maneiras pedem que se respeitem os mais velhos. Mas isso já faz mais de uma semana e eu adoraria voltar a falar do livro de Chico Amaral sobre a música de Milton ou começar a falar das “Cartas de marear”, de Helio Eichbauer. Infelizmente, ao contrário do que disse Zuenir, o assunto das biografias ainda não deu o que tinha de dar.
Na verdade, depois da piada de Zuenir a imprensa intensificou a atitude tropa de choque. A tal ponto que pensei em pôr minha máscara de black bloc e enfrentar os ataques ditos não letais e assim proteger os manifestantes pacíficos que se chamam Chico, Djavan, Marisa, Erasmo, Gil, servindo-lhes de vanguarda militar informal.
Mas sou da paz. O artigo de Ana Maria Machado deveria ser lido por quem quer que se interesse pelo assunto (pelo visto nas folhas e nas redes, o interesse é enorme, embora não pareça ser pelo que é discutível na questão, e sim pela oportunidade de agredir quem ganhou prestígio no Brasil, país que ainda precisamos tanto provar que não vale nada nem poderá nunca valer nada). Ela fala do instinto de autodefesa desenvolvido por quem sofreu demasiadas vezes a violência do uso ilegítimo da palavra escrita.
Como jurista baiano, tendo a pensar que o PL 393, ao falar em “divulgação de imagens, escritos e informações com finalidade biográfica” dá demasiada ênfase à liberdade de informação, omitindo completamente qualquer possibilidade de proteção da intimidade. A barulheira que a imprensa faz impede que pensemos com cuidado sobre esse problema. “Divulgação” é termo muito vago e “imagem” nos leva logo a pensar em filmes e minisséries invasivos e rentáveis. Muitos põem a liberdade de expressão acima do direito à privacidade. Mas notemos que, da grande imprensa, só o “Estadão” (que não tem editora de livros) admite que se considere o equilíbrio entre esses dois direitos constitucionais. O resto diz apenas que o direito de informar é absoluto. Nunca quis censura prévia de coisa nenhuma. Mesmo a biografia de Roberto Carlos não foi censurada previamente. Um juiz, valendo-se do que o Código Civil admite, pôde pedir a suspensão das vendas. Depois as partes fizeram um acordo.
Solidarizo-me com meus colegas. Ao ver notas sobre supostos dramas familiares de jovens atores (com avanços sobre motivos íntimos não confirmados por nenhum dos envolvidos), penso no que disse Ana Maria: nas revistas e sites invadem-se intimidades e a nossa discussão parece ater-se aos livros biográficos. Seja como for, o PL 393 agrava a situação de quem está exposto a isso, já que não temos nada na lei que leve a imprensa a pensar duas vezes. Nem as punições nem a velocidade dos julgamentos intimidam ninguém.
O que ambiciono, ao dar as costas às minhas antigas ideias simplistas a respeito, é um aprofundamento da discussão. Sinto-me à vontade na posição de desafiar o poder da imprensa. É minha cara. A exigência feita por Ana Maria Machado de que deixemos de brigar por contraste de posições e passemos a tomar conta do respeito às pessoas, que a indústria da notícia escandalosa agride, calou fundo. É nesse panorama que convido as pessoas razoáveis a pensarem comigo. Nada muito diferente do que quer a presidente da ABL: que não ajamos como se a democracia tivesse que escolher entre a censura e a difamação. Será que o tom histérico da imprensa e a psicopatia coletiva das redes são a palavra final? Acho que Chico, Gil e eu não estarmos em posição confortável reafirma nosso histórico, ao invés de desmenti-lo. Eu desconfiaria se os três estivéssemos, ao mesmo tempo, tendo apoio unânime. Nelson Motta, biógrafo, defende força na indenização, que não repara o sofrimento do ofendido mas dói no bolso do ofensor. Não somos um bando de censores. Livros à mancheia e manda o povo pensar. Mas pensar. Em Fortaleza, entre voos longos e show puxado, não posso fazê-lo bem. Embora seja maravilha estar aqui. Mas tento e recomendo.
De O Globo
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