Tenho atravessado a vida perdendo pessoas. Suspeito que, nesse processo, sem me dar conta, fui-me perdendo um pouco de mim
Pescador fica às margens do maior lago Poyang de água doce da China em Juijiang NOEL CELIS / AFP |
Alguém me abraça. Alguém me diz: “Tem coragem. As pessoas só morrem quando nos esquecemos delas.” Seguindo a mesma linha de pensamento, então também morremos um pouco de cada vez que alguém que amamos se vai embora. Morremos porque as memórias que essa pessoa tinha de nós desaparecem, extinguem-se, vão-se para sempre.
Partilhei a infância com uma prima da mesma idade. Chamava-se Zalucha. Partiu no domingo passado, vítima de um câncer nos ovários. Na última ocasião em que estivemos juntos, faz poucas semanas, recordamos a luz inesgotável desses dias antigos. A cada encontro ela me oferecia, ou devolvia, memórias novas: uma série infindável de histórias de uma época em que, para o bem e para o mal, as crianças cresciam mais soltas. Tenho no corpo várias cicatrizes que me lembram essa liberdade (sim, a liberdade pode ser perigosa).
Passar algumas horas com a minha prima fazia com que eu regressasse à casa um pouco mais inteiro. Zalucha cultivava laços e traficava memórias não apenas comigo, mas com todas as pessoas que foram importantes durante o nosso crescimento. Eu, pelo contrário, nunca soube fazer isso. Tenho atravessado a vida perdendo pessoas. Suspeito que, nesse processo, sem me dar conta, fui-me perdendo um pouco de mim.
Lembro-me do grande romancista português António Lobo Antunes contar, em várias entrevistas, que se habituou a negociar com a morte, após descobrir, em 2007, um câncer no intestino: “Deixa-me só escrever mais um livro, mais dois, mais três”, pedia ele à morte. Felizmente, escreveu mais 15 depois disso. Os livros foram a maneira que Lobo Antunes encontrou de se manter inteiro no fluxo do tempo.
“Ninguém sabe o que é a morte”, disse ainda Lobo Antunes numa outra entrevista, antes de acrescentar: “Mas isso não tem importância nenhuma, porque também ninguém sabe o que é a vida.”
Já contei, neste mesmo espaço, um episódio passado com a minha filha Kianda, quando, com 2 anos e meio, me contou ter visto uma minhoca morta: “Papi, hoje vi uma minhoca, mas ela não falou comigo porque estava morrida.”
Gostei da expressão. Kianda, usando do maravilhoso desrespeito das crianças para com a morte, tirou-lhe a irrevogabilidade. “Estar morrido” deve ser um pouco como “estar adormecido”. A minhoca não falou com ela por distração. Num outro dia, quem sabe, já bem viva e refeita, talvez se dispusesse a conversar.
“No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, / Eu era feliz e ninguém estava morto” — escreveu Fernando Pessoa, num dos seus poemas mais conhecidos. Nesses versos, o poeta parece sugerir que a felicidade é impossível depois que crescemos, e, sobretudo, depois que morre alguém a quem amávamos. Assim, a felicidade seria sempre uma irresponsabilidade. Quero acreditar, contudo, que existe uma felicidade que resulta do reconhecimento e da aceitação do inevitável. Um dia, mergulharemos todos no grande lago escuro. O importante é o estado em que chegamos lá.
A bravura com que a minha prima lutou contra a doença, a dignidade com que enfrentou a morte, talvez se explique porque estava intacta. Chegou ao fim, magra e frágil — mas inteira. Pronta, afinal, para um outro recomeço.