terça-feira, 2 de junho de 2020

Combater o racismo também passa por ter mais jornalistas negros nas redações

Vagner de Alencar
Assim que ingressei no curso de jornalismo na Universidade Presbiteriana Mackenzie, há oito anos, ouvi de um colega a seguinte frase: “Que sorte! Você vai conseguir o emprego que quiser.” 
Para ele, que era branco, o status da faculdade, considerada uma das melhores universidades privadas do país, seria a chancela para ocupar um bom posto de trabalho. Só que não. 
Apesar de as ações afirmativas mudarem a cara do ensino superior, como o surgimento do Prouni (Universidade Para Todos), em 2005, ainda assim essa é uma porta difícil de ser aberta para ocupar um emprego de qualidade. 
No meu caso, sou um entre os mais de 3 milhões de universitários beneficiados por essa política pública, por exemplo. 
Mas perseguir o sonho do jornalismo imaginando que a classe social seria o maior impeditivo seria um ledo engano — afora a questão de gênero, já mencionada em artigo escrito pela Cintia Gomes
Dos 40 alunos matriculados em minha sala de aula, cinco eram bolsistas integrais. Desses Henrique e eu os únicos negros (importante dizer: ambos, porém, de pele clara). Um semestre depois, Henrique abandonou o curso ao tornar-se pai e ser aprovado em concurso para segurança no Metrô. 
Se nos corredores da instituição já era difícil ver negros, o mesmo acontecia nas entrevistas de estágio à época, das quais eu pelo menos era chamado para a primeira fase por constar no currículo o nome da universidade.
Como disputar uma vaga bacana ao lado do colega branco, morador do centro expandido, com intercâmbio na Europa e fluência em inglês?
Se já havia poucas referências na área, não havia pares. De classe, tampouco cor. Apesar da quantidade de estudantes rumo à conquista do diploma superior, o mercado da comunicação era branco. E ainda é. 
Segundo dados do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), apenas cerca de 22% dos jornalistas com postos formais são negros (dados de 2015). E em São Paulo os números são ainda menores: menos de 15% dos jornalistas com carteira assinada são negros.
Prova disso, desde o dia 25 de maio, a pandemia da Covid-19 divide espaço com a cobertura da série de protestos pelo assassinato de George Floyd, um homem negro de 40 anos morto pela polícia, nos Estados Unidos. 
A onda de protestos inclusive tem motivado atos por diferentes países do mundo, incluindo o Brasil.
Nas emissoras de televisão, especialmente as pagas, o noticiário sobre as manifestações contra o racismo foi comentado por uma série de colunistas e apresentadores. Brancos. Até apresentador acusado de racismo.
Apesar de pipocarem iniciativas em busca de diversidade nas redações, poucos ainda são os processos seletivos focados na contratação de pessoas pretas. 
De acordo com o IBGE (Índice Brasileiro de Geografia e Estatística), a população brasileira é formada por 55,8% de negros.
Mirando para o nosso próprio umbigo, aqui na Agência Mural, atualmente 55% dos quase 80 correspondentes espalhados pela região metropolitana de São Paulo se consideram pardos e pretos. 
Dos 11 profissionais que integram a equipe fixa da Mural, formada pelos editores e repórteres, metade é negra. 
Em 2010, quando integrei a Mural, ainda como um blog na Folha de S.Paulo, pela primeira vez consegui encontrar os pares de cor que havia cruzado até então como atendente de lanchonete na Feira da Madrugada, no centro de São Paulo.
Consigo contar na ponta dos dedos quantos colegas estagiários e chefes por onde passei não eram brancos.
Hoje nossa redação é diversa porque as periferias são diversas. As histórias são plurais. Essa diversidade, que também é territorial em sua função de trazer as periferias para o centro da discussão, fugindo dos estereótipos a elas, permite que esses profissionais sejam intitulados não como repórteres de minorias, mas capazes de abordar qualquer assunto para além da negritude.
Nos últimos dois anos, especialmente, muitos correspondentes da Mural têm dividido ou  abandonado o posto (por uma boa causa, diga-se de passagem) ao serem admitidos em redações de grandes jornais. De certo modo, estamos ajudando a enegrecer e a trazer a diversidade para veículos ainda quase ou totalmente brancos.
É o caso de Henrique Sales, 20, estudante da PUC e ex-correspondente do Jardim Angela, na zona sul de São Paulo, selecionado no início deste ano em uma vaga de estágio no UOL.
“O jornalismo ainda é muito hostil ao negro. Não basta só falar ‘que chato, os negros são subrepresentados’ e seguir a vida. Ter consciência disso por si só é muito pouco. Há que se construir algo coletivamente. Não é normal uma subrepresentatividade dessa”, reforça.
Já para Beatriz Sanz, 26, repórter do Uol e ex-correspondente de Diadema, na Grande São Paulo, a barreira encontrada por muitos jovens jornalistas negros está no fato de grandes veículos lhes negarem oportunidades.
Em novembro de 2019, a jornalista idealizou o Banco de Talentos Negros, iniciativa que disponibiliza currículos de profissionais pretos de 12 cidades brasileiras para vagas em comunicação, aumentando as chances de inserção no mercado. 
“Esperamos que as empresas de comunicação de todo o Brasil se conscientizem sobre a falta de jornalistas negros. Nosso trabalho é ligar essas empresas a profissionais qualificados”, afirma ela, que também foi repórter nos portais El País e R7.
A maioria dos cargos de poder das grandes redações ainda é formada por pessoas majoritariamente brancas e de classe média. Espero que, mais do que carregar a culpa por não terem redações diversas, possamos ver soluções realmente efetivas para mudar esse cenário e combater o racismo. 
Vagner de Alencar é cofundador e diretor de jornalismo da Agência Mural de Jornalismo das Periferias
vagnerdealencar@agenciamural.org.br