A imortalidade é para os deuses. Em nós, ela seria uma deformação, mas nem por isso deixaremos de procurá-la e construí-la. Muitas vezes, quando vejo paquitas velhas andando pelas ruas, lembro de Dorian Gray e sua aposta na juventude eterna.
A propósito, nada deixa filhos e filhas mais envergonhados do que pais e mães que querem parecer jovens como eles. Um ridículo de doer. Impressionante como, à medida que a vida se torna mais longa, a alma se torna irrelevante.
Na obra de Oscar Wilde "O Retrato de Dorian Gray" (versão ampliada, publicada em 1891), a imagem não só envelhece no lugar de Dorian como "recolhe" a deformação da alma daquele (Dorian) que não envelhece. Esse livro é uma das maiores profecias sobre a modernidade e sobre sua aposta na redenção pelo desejo de vida eterna bela e saudável --e consequente fracasso.
Dorian é um jovem bonito e sedutor, mulheres e homens ficam enlouquecidos por ele. Sendo ele mesmo, Oscar Wilde, gay (e teve um importante affaire em sua vida que muito lhe custou), a temática gay como "rebeldia" (um tema sem dúvida datado; só gente cafona ainda vê rebeldia em alguma forma de sexualidade) perpassa o romance, mas neste é apenas um detalhe, caso contrário ele não seria mais um clássico.
Italo Calvino dizia que um clássico é um livro que nunca se acaba de ler porque o que ele tem a dizer é inesgotável. O que tem Dorian Gray a nos dizer de infinito? Algumas coisas.
Vivendo numa sociedade vitoriana bastante repressora, Oscar Wilde, esteta da moral (normalmente gente assim acha que as sensações nos formam mais profundamente do que nossas ideias --concordo com os estetas em grande parte), brinca com o niilismo hedonista como forma de resposta à falta de sentido da vida.
Dorian, eternamente jovem e belo, come todo mundo, viaja pelo mundo, come todo mundo, bebe todas, come todo mundo, mergulha no ópio, come todo mundo e volta para casa anos depois, eternamente jovem, belo e saudável.
Mas fracassa: não suporta tanta "felicidade". Só bobo "acredita" no desejo, mas, se você nunca levou o desejo ao extremo da realização, talvez não tenha noção do custo desse fato: "O tédio é o único pecado para o qual não há perdão", dizia nosso grande escritor irlandês.
Se o hedonismo apresentado por Oscar Wilde no romance trai a afetação de quem vivia antes da broxante revolução sexual dos anos 60, ainda hoje não desistimos de apostar numa forma de hedonismo, aquele que podemos definir como "safe": faço tudo, mas com camisinha e sem tabaco.
Wilde provavelmente experimentaria um enorme tédio hoje em dia, maior do que em seus anos vitorianos, porque então podíamos dar a desculpa da ignorância: hoje sabemos que já nos deixaram desejar tudo e descobrimos que não desejamos mais nada.
Talvez nunca tenham andado sobre a Terra homens e mulheres com tão pouco desejo. É o contrário do que os bonitinhos afirmam por aí: temo que, antes da água, o desejo desapareça do ecossistema.
Nós, contemporâneos, teríamos processado o pintor do retrato de Dorian Gray por não nos ter poupado do enlouquecimento da alma.
Em vez de considerar esse enlouquecimento da alma representado no retrato (a alma velha e deformada pelo excesso de desejo realizado) como o limite imposto "pelos deuses", como forma de cura da desmedida humana, nós, contemporâneos, seres sem desejo, o teríamos considerado uma falta de respeito ao nosso direito a felicidade e juventude eternas.
Mas nem por isso Dorian Gray fala menos a nossas almas apequenadas. Pelo contrário, somos quase todos o seu retrato. Figuras deformadas pelo projeto de saúde total, de egoísmo fisiológico pleno, pelo retardo mental como ideal cultural máximo e pela declaração de guerra ao amadurecimento.
Wilde nos legou como herança a aposta não de que nós seríamos Dorian Gray, jovem atormentado pela descoberta do que o deuses sempre souberam (que necessitamos da dor, da morte e do sofrimento como formas de humanização), mas sim seu retrato: um rosto que recolhe a grotesco de um mundo clean, "safe", teen e maníaco pela saúde.
Da Folha