Não há postos de saúde, escolas precárias vão até o ensino médio
Uma filha, geógrafa, foi trabalhar no litoral nordestino. Não nomearei os locais para não prejudicar o pequeno turismo que ajuda os moradores. O cenário é, à primeira vista, deslumbrante. Imensas extensões de areia puríssima, aquele mar vasto, que fazia os antigos navegadores temerem o abismo caso chegassem à linha do horizonte. Vê-se nas fotos uma traineira para pesca de camarão, quilômetros depois uma ou outra jangada e pensamos no paraíso.
O problema é que não há postos de saúde, escolas precárias vão até o ensino médio e olhe lá. Não existem centros culturais, de lazer ou bibliotecas. Cerca de 30% a 40% dos moradores se converteram em ferozes evangélicos, que ameaçam seus concidadãos com o diabo e o fogo do inferno por qualquer motivo besta. A alimentação é paradoxal: fartura de peixes, camarões, lagostas, e pirão de farinha. Macarrão, feijão e arroz são considerados comida de rei. Vivem principalmente do artesanato de garrafas com areia colorida, nas quais reproduzem a belíssima paisagem. A triste surpresa é que, entre os não fanatizados por uma crença estúpida, prolifera um número absurdo de viciados em crack. Adolescentes, artesãos, pescadores, mulheres, velhos, todo mundo pegando no cachimbinho. Um deles disse na entrevista:
— Experimenta, menina! A gente fuma depois de uns copos de litrão (cachaça) e a tristeza vai embora...
Quando um fica mal devido ao vício, os outros procuram ajudar, talvez de forma mais humana do que os ditos evangélicos. Pode-se, logo nos primeiros dias, ver os sinais da tal tristeza: uma alegre menina, que adorava andar de bicicleta, ficou cega ao ser atropelada por um ônibus. Levou tanto azar que teve os olhos rasgados pelos cacos de espelho da bicicleta. O ônibus passava em frente à porta da casa dela, transportando operários para um “empreendimento” distante. Da noite para o dia, a rua deserta foi invadida pelo tráfego de veículos pesados. Não colocaram quebra-molas, sinalização, nada. A família tentou uma indenização que não se concretizou. A garota vai, com uma coragem incrível, ter aulas de braille uma vez por semana. Cinco horas para ir, mais cinco para voltar. Ela gosta de ler. Outra criança, menino de 1 ano: febre e convulsão. Levado ao hospital público mais próximo, quase cem quilômetros de distância, não foi atendido corretamente. Um antitérmico. Tchau! Piorou. O pai, jovem de 21 anos, voltou e fez ameaças com a peixeira. Era tarde. O menino teve lesões irreversíveis e sofre de paralisia cerebral. Tem mais: um artesão foi trocar a bolsa de colostomia. O quadro se complicou no hospital — cloaca. Apesar de já anestesiado, alguém veio avisar que não havia como prosseguir. Falta de condições. Aí, apareceu um médico (?) e disse que poderia fazer o serviço em sua clínica particular. 600 reais.
Pertinho do tal hospital funciona ótima clínica de plano de saúde poderoso, um desses que mantêm seu time na Primeirona — mas a grande maioria daqueles miseráveis no paraíso não pode pagar.
Feliz Natal.