Natal estava sob chuva quando cheguei tarde da noite mas amanheceu ensolarada. Da janela do hotel dava para ver a Ponta Negra, que uma vez já escalei com muita vertigem (invejo Zuenir e Mary, capazes de subir dunas verticais sem se sentirem numa cena de “Gravidade”). Sempre achei o nome Ponta Negra misteriosamente apropriado. Uma razão mais lógica deve existir para a nomeação, mas a mim me parece que esse evoca a solenidade da vista. “Ponta” descrevendo a forma geográfica e “negra” dando o tom grandioso. A palavra “negro” sugere uma preciosidade que “preto”, seu sinônimo, não suporta. Sendo ambas o nome da cor (ou ausência de cor) dos objetos de que a luz não volta, “preto” traz à mente algo fosco e pedestre, enquanto “negro” anuncia brilho e mistério. Se se fala de um vestido preto, pode-se estar falando de uma peça de roupa que se usa em qualquer lugar. Mas um vestido negro é necessariamente um traje para ocasião especial, festa noturna e de gala, ou vestimenta ritual de monjas e bruxas.
Em inglês, língua em que “negro” não designa a cor mas exclusivamente a etnia dos subsaarianos, “preto” (“black”) passou a ser preferido, para se referir aos descendentes de escravos africanos, depois que “Negro” (que se grafa sempre com a inicial maiúscula, como acontece com os toponímicos) revelou-se contaminado do valor semântico pejorativo que em “nigger” chega a equivaler a um xingamento. Não há a possibilidade de se dizer “a Negro dress” (“um vestido negro”) em inglês, exceto se se quer dizer, de modo aliás raro, que um certo vestido tem características da subcultura norte-americana afrodescendente. Em francês há exclusividade do sentido étnico para “negro” na palavra “nègre” — que, ao que parece, já tem carga negativa há séculos. Pedro Sá imita muito bem um entrevistado de documentário de Coutinho que, ressaltando o orgulho que tem de sua ascendência, diz, em voz grave, “Preto é cor; negro é raça”. Acho curioso que “black” tenha prevalecido nos Estados Unidos, a partir do movimento dos direitos civis e finalmente difundindo-se por toda a sociedade, e “negro” seja a palavra escolhida pelo discurso racialista no Brasil. Pessoalmente, quase só uso “preto” para me referir a pessoas de pele escura e cabelo crespo: “negro” me soa como se se estivesse querendo envernizar uma ideia simples, como quando se diz “firmamento” em vez de “céu” ou “rubro” em vez de “vermelho”. Mas às vezes parece-me que só “negro” dá a imponência que desejo sublinhar em certas figuras (acho que outro dia, aqui mesmo, falei do rosto negro de Milton Nascimento).
Há algo em Ponta Negra que exige isso. Resulta que o nome se parece muito com o lugar, embora o que o marca seja a língua cor de marfim que sobe para o céu entre duas margens de vegetação. Por alguma razão misteriosa, eu, em minha ignorância, acho que o nome Ponta Negra foi dado a essa língua de areia, não à ponta de terra que a comporta. Estive duas vezes este ano em Natal. Em ambas fiz o show “Abraçaço”. Mas agora, além do show (que foi em praça pública, para uma multidão de sumir de vista e que me comoveu ao cantar refrãos e trechos das canções do novo disco — e de seguir com respeitosa atenção a longa e lenta “Um comunista”, inclusive aplaudindo-lhe alguns versos), fiz uma palestra em parceria com o poeta Eucanaã Ferraz, sobre poesia e letra de música. Foi bonito ouvir Eucanaã falar para aquela plateia interessada, sob uma tenda armada para a Semana Nacional do Livro da UFRN. O que fez com que eu me sentisse bem quando foi a vez de eu próprio falar. Mas o melhor de tudo foi ouvir Eucanaã ler a letra de “Itapuã”, numa interpretação que me fez acreditar que aquilo era poesia.
De Natal fui para a Bahia para participar da aula inaugural da primeira escola em Santo Amaro da Universidade do Recôncavo. Minha cidade é muito negra. Digo isso e percebo quando é que uso “negro” naturalmente. Há muitas pessoas pretas, quase-pretas e mulatas. Numa mesa de calçada de um bar de esquina, conversei com meus irmãos Rodrigo e Mabel (somos mulatos). Um cara que conheci lá me contou que o povo de Santo Amaro diz que a escola que coube a nossa cidade é uma escola de mata-cachorro. Como os cursos ali tratarão de produção musical e engenharia de espetáculos, o nome que lá sempre se deu aos contrarregras de circo (mata-cachorros) foi usado para mofar daquilo que nos foi destinado. Mas minha profecia é que dali nascerá uma força cultural que superará o crime do chumbo (como é que o Chico Oliveira diz que a luta ecológica não é enfrentamento do capitalismo?), a favelização e a tristeza. Os mensaleiros serão presos e as biografias serão soltas? Vou para Bogotá.