Um dos melhores discos de rock brasileiro de sempre é o novo do
Cascadura
Faz duas semanas, comentando aqui o “Gonzaga” de Breno Silveira, escrevi que o show “Luiz Gonzaga volta pra curtir” talvez tivesse sido dirigido por Waly Salomão. Não foi. O diretor foi Jorge Salomão. Waly, segundo o próprio Jorge, só criou o título, que ele logo aprovou. O show foi coisa que ficou marcada na minha cabeça como a oficialização do reconhecimento de Gonzaga por parte da juventude de então. Disse que senti falta de uma referência a isso no filme, como senti falta de Ivan Lins e do Som Livre Exportação. Ao afirmar que a ausência de referências ao tropicalismo não me incomodava, eu não estava renegando. Mal pensei no papel do tropicalismo nesse episódio. Lembro-me de ouvir jovens contraculturais dizerem que os Beatles iam gravar “Asa branca”. Essa lenda revela muito do clima mental da época. O ressurgimento de sons rurais que veio com o rock (e que Ruy Castro deplora em seu livro sobre a bossa nova, por considerar parte do assassinato da grande canção urbana dos anos 1930 e 40) levava a moçada a fantasiar que o campo brasileiro entraria no repertório do topo do pop-rock anglo-saxão.
Faz pouco tempo David Byrne finalmente gravou esse clássico nosso, realizando, com décadas de atraso, o sonho dos malucos de 1968. David pertence ao topo do pop-rock anglo-saxão e, atendendo a convite de Mauro Refosco (que, aliás, está participando de um projeto extra-Radiohead de Thom Yorke, chamado Atoms for Peace), gravou “Asa branca”. Em inglês, como os desbundados dos sixties imaginavam que os Beatles fariam. O delírio dos malucos se realizou. Esse delírio tinha ligações com o tropicalismo.
Gil sempre foi apaixonado por Luiz Gonzaga, não tendo feito sequer uma suspensão desse amor durante a fase heroica da bossa nova, coisa por que eu, um amante de Gonzaga aos 8 anos, tinha passado quando cheguei aos 17. Não que eu desconsiderasse a força de Gonzaga, mas eu a situava num terreno infantil, esquemático e ingênuo. Assim eu o via — sem pensar muito nele — no período bossa nova da minha vida. O tropicalismo trouxe o velho Lua de volta ao meu coração. Sua invenção pop do combo sanfona-zabumba-triângulo tinha tudo a ver com o “Se manda” de Jorge Ben e, portanto, com o que a gente planejava alcançar em nossas criações.
Não estou seguro de que o sonho acalentado pela rapaziada do final dos anos 1960 de que os Beatles teriam gravado “Asa branca” não tenha sido uma das motivações da minha decisão de gravar essa música quando fiz meu primeiro disco londrino. Cantei-a em português exageradamente pernambucano e só com meu violão de náilon, contrastando fortemente com a fantasia dos desbundados. Claro que a razão primeira era a situação de exilado em que me encontrava: a letra com esperança de volta dizia tudo o que eu queria dizer.
A definição da atitude tropicalista teve muitos elementos pernambucanos. Não apenas o amor de Gil por Gonzaga e sua repetidas vezes referida passagem pelo Recife logo antes da virada pop na produção de canções no Brasil. Havia também (e isso sobretudo para mim) a arrebatadora invenção do trio elétrico — e esta não se entende sem a passagem do bloco Vassourinhas por Salvador em 1949: o frevo-hino dessa agremiação recifense virou hino eterno do carnaval baiano. O carnaval eletrificado da Bahia era uma força avassaladora só conhecida dos habitantes de Salvador. Enconrajou-nos a eletrificar nossa música e nos ajudou a chegar perto do rock por caminho muito nosso. E o rock entrou no carnaval, com os trios soando entre heavy metal e progressivo a partir dos anos 1970. A história do rock na Bahia é intensa e rica — e, embora roqueiros precisem opôr-se ao carnaval, ela não existe sem reconhecer-se nele. Não apenas Raul, Marcelo Nova e Pitty sairam para o mundo gritando o rock soteropolitano: o rock já tinha entrado na circulação sanguínea do próprio carnaval.
Quero ser justo: um dos melhores discos de rock brasileiro de sempre é o novo do Cascadura, “Aleluia”. Fico profundamente feliz: Zeca (ainda pequeno) e eu ouvíamos apaixonados o CD dessa banda resistente quando eles gravaram “Nicarágua”. Eles nunca esmoreceram. Agora trazem um trabalho extenso e denso, com rítmica complexa, timbres ricos e interpretações espetaculares de Fábio. É um disco de responsa, que todos os amantes de rock deveriam ouvir. Não deixa de ser significativo que eu o tenha ouvido logo depois de ver Luiz Caldas encerrar noite quente no Fantoches com “Vassourinhas”. O Baiana System também falou da história da guitarra baiana, olhando para o futuro. Há referências ao carnaval em “Aleluia”. Vou ouvir mais. E falar mais. Eu me perco: é que quero ser justo como Salomão.
Faz duas semanas, comentando aqui o “Gonzaga” de Breno Silveira, escrevi que o show “Luiz Gonzaga volta pra curtir” talvez tivesse sido dirigido por Waly Salomão. Não foi. O diretor foi Jorge Salomão. Waly, segundo o próprio Jorge, só criou o título, que ele logo aprovou. O show foi coisa que ficou marcada na minha cabeça como a oficialização do reconhecimento de Gonzaga por parte da juventude de então. Disse que senti falta de uma referência a isso no filme, como senti falta de Ivan Lins e do Som Livre Exportação. Ao afirmar que a ausência de referências ao tropicalismo não me incomodava, eu não estava renegando. Mal pensei no papel do tropicalismo nesse episódio. Lembro-me de ouvir jovens contraculturais dizerem que os Beatles iam gravar “Asa branca”. Essa lenda revela muito do clima mental da época. O ressurgimento de sons rurais que veio com o rock (e que Ruy Castro deplora em seu livro sobre a bossa nova, por considerar parte do assassinato da grande canção urbana dos anos 1930 e 40) levava a moçada a fantasiar que o campo brasileiro entraria no repertório do topo do pop-rock anglo-saxão.
Faz pouco tempo David Byrne finalmente gravou esse clássico nosso, realizando, com décadas de atraso, o sonho dos malucos de 1968. David pertence ao topo do pop-rock anglo-saxão e, atendendo a convite de Mauro Refosco (que, aliás, está participando de um projeto extra-Radiohead de Thom Yorke, chamado Atoms for Peace), gravou “Asa branca”. Em inglês, como os desbundados dos sixties imaginavam que os Beatles fariam. O delírio dos malucos se realizou. Esse delírio tinha ligações com o tropicalismo.
Gil sempre foi apaixonado por Luiz Gonzaga, não tendo feito sequer uma suspensão desse amor durante a fase heroica da bossa nova, coisa por que eu, um amante de Gonzaga aos 8 anos, tinha passado quando cheguei aos 17. Não que eu desconsiderasse a força de Gonzaga, mas eu a situava num terreno infantil, esquemático e ingênuo. Assim eu o via — sem pensar muito nele — no período bossa nova da minha vida. O tropicalismo trouxe o velho Lua de volta ao meu coração. Sua invenção pop do combo sanfona-zabumba-triângulo tinha tudo a ver com o “Se manda” de Jorge Ben e, portanto, com o que a gente planejava alcançar em nossas criações.
Não estou seguro de que o sonho acalentado pela rapaziada do final dos anos 1960 de que os Beatles teriam gravado “Asa branca” não tenha sido uma das motivações da minha decisão de gravar essa música quando fiz meu primeiro disco londrino. Cantei-a em português exageradamente pernambucano e só com meu violão de náilon, contrastando fortemente com a fantasia dos desbundados. Claro que a razão primeira era a situação de exilado em que me encontrava: a letra com esperança de volta dizia tudo o que eu queria dizer.
A definição da atitude tropicalista teve muitos elementos pernambucanos. Não apenas o amor de Gil por Gonzaga e sua repetidas vezes referida passagem pelo Recife logo antes da virada pop na produção de canções no Brasil. Havia também (e isso sobretudo para mim) a arrebatadora invenção do trio elétrico — e esta não se entende sem a passagem do bloco Vassourinhas por Salvador em 1949: o frevo-hino dessa agremiação recifense virou hino eterno do carnaval baiano. O carnaval eletrificado da Bahia era uma força avassaladora só conhecida dos habitantes de Salvador. Enconrajou-nos a eletrificar nossa música e nos ajudou a chegar perto do rock por caminho muito nosso. E o rock entrou no carnaval, com os trios soando entre heavy metal e progressivo a partir dos anos 1970. A história do rock na Bahia é intensa e rica — e, embora roqueiros precisem opôr-se ao carnaval, ela não existe sem reconhecer-se nele. Não apenas Raul, Marcelo Nova e Pitty sairam para o mundo gritando o rock soteropolitano: o rock já tinha entrado na circulação sanguínea do próprio carnaval.
Quero ser justo: um dos melhores discos de rock brasileiro de sempre é o novo do Cascadura, “Aleluia”. Fico profundamente feliz: Zeca (ainda pequeno) e eu ouvíamos apaixonados o CD dessa banda resistente quando eles gravaram “Nicarágua”. Eles nunca esmoreceram. Agora trazem um trabalho extenso e denso, com rítmica complexa, timbres ricos e interpretações espetaculares de Fábio. É um disco de responsa, que todos os amantes de rock deveriam ouvir. Não deixa de ser significativo que eu o tenha ouvido logo depois de ver Luiz Caldas encerrar noite quente no Fantoches com “Vassourinhas”. O Baiana System também falou da história da guitarra baiana, olhando para o futuro. Há referências ao carnaval em “Aleluia”. Vou ouvir mais. E falar mais. Eu me perco: é que quero ser justo como Salomão.
De O Globo