Estou longe agora, mas me orgulho de que se precise golpear tanto o carnaval da
Bahia
Li com interesse e carinho a entrevista de João Jorge, o fundador e presidente do Olodum e meu amigo, à “Folha de S.Paulo”. A chamada de primeira página dava um gosto tipicamente “Folha” à matéria: Ivete Sangalo seria a única artista do carnaval baiano. Ser esse um carnaval de uma artista só, completava o corpo da reportagem amparado em falas de João, tinha um motivo: a artista era branca. Para um baiano que vive e observa o carnaval de Salvador desde 1960, essas declarações parecem absurdas. Passei uma noite na rua em Ondina, onde culmina o circuito Barra-Ondina do carnaval soteropolitano. Brinquei na pipoca ao som e à luz do Psirico, de Daniela, do 8794 e de um outro cujo nome não lembro mas que tinha a ver com música sertaneja. Psirico e Daniela são estrelas das ruas carnavalescas da Bahia pelo menos tão grandes quanto Ivete. Acho que João Jorge usou a Sangalo como metonímia da concentração de riqueza e atenção de que parte da folia baiana desfruta porque ela é atualmente a única diva do nosso carnaval que tem status de estrela nacional. Bem, Daniela também tem. Mas Daniela não é a bola da vez, embora não esteja tão esquecida dos brasileiros de todas as regiões não ligadas à Baía de Todos os Santos quanto Luiz Caldas, que também já foi sucesso do Oiapoque ao Chuí.
Acabo de chegar a Sanremo, na Itália, vindo direto do Recife, onde cantei para a multidão que enche o Marco Zero. A mera visão dessa multidão recifense teria feito a viagem valer a pena. Mas ainda conseguimos interessá-la com nossa mistura de samba carioca (Trio Preto +1), frevo baiano trieletrizado, uma obra-prima de Antônio Maria e os tratamentos indie-roqueiros de canções minhas recentes (bandaCê). Nem quero falar no Recife. O espírito pernambucano está me dando muito.
Impressiona-me que o carnaval da Bahia seja alvo de críticas muito exigentes. O fenômeno da axé music sem dúvida exaltou os ânimos críticos dos brasileiros presunçosos, e isso desencadeou uma avalanche de reações contra a existência de cordas em blocos (coisa que sempre houve, sendo que os desfiles das escolas de samba do Rio chegaram à construção de algo bem mais sólido do que uma mera corda), de camarotes (como se isso tivesse sido inventado na Bahia), de racismo (como se o carnaval fosse um período de expressão privilegiada dessa nossa doença histórica). Estou num hotel à beira-mar, sozinho num quarto, sentindo-me triste por causa de coisas desse período da minha vida. Penso no carnaval de minha terra como em algo de repente distante.
Não apenas Psirico e Daniela são grandes. Xande do Harmonia do Samba e Caudia Leitte também. Sem falar no Chiclete com Banana, Brown e a Timbalada. Por que João Jorge atribui o êxito de Claudia e Ivete ao fato de elas serem brancas se Márcio Vítor é preto e é um rei das ruas e dos vídeos? Meu desejo era discutir aqui, trazendo um pouco de racionalidade, as questões que estão encapsuladas na entrevista de João Jorge e difusas em conversas e artigos. Não tenho muito como me concentrar para fazê-lo bem, já que preciso relembrar a letra e as harmonias de “Piove” e treinar com uma orquestra italiana “Você é linda” para cantar hoje à noite. Isso sem ter dormido quase nada entre o show de terça no Recife e a viagem de quarta/quinta para Sanremo via Lisboa e Nice. Muita coisa. Mas posso lembrar apenas alguns fatos que nos devem fazer pensar.
Os trios elétricos sempre arrastaram mais gente dos que os blocos de corda. Os afoxés estavam morrendo quando Gil fez “Filhos de Gandhi”, e isso atraiu participantes e turistas. Os blocos afro surgiram depois disso. Blocos “brancos”, como Internacionais e Corujas, tampouco tinham grande acompanhamento. Os trios arrastavam a massa. Não tinham corda. Só eles. Logo tiveram patrocínio (marcas de cachaça). A burguesada ia para os bailes. Com a fama nacional dos trios, turistas desbundados vieram a partir de 1970. Os blocos contrataram trios. Ficaram ricos e armaram equipamentos sonoros de show de rock. Viraram estouro federal. Na Avenida Sete, em 1960, os moradores alugavam cadeiras amarradas para quem pudesse pagar para assistir. Não há mais bailes. Há camarotes e blocos que vendem abadás. Há trios (mesmo estelares) que passam sem corda. Os blocos com corda atraem foliões pipoca. Estes, tudo somado, são em número e porcentagem superiores aos do passado. Quem está mesmo reclamando de quê?
A maioria foge do carnaval. A minoria que brinca é imensa. O valor simbólico da festa é inestimável. Carnaval não é uma série de passeatas pró-ordem, conforto ou justiça social. Estou longe agora, mas me orgulho de que se precise golpear tanto o carnaval da Bahia.
De O Globo
Li com interesse e carinho a entrevista de João Jorge, o fundador e presidente do Olodum e meu amigo, à “Folha de S.Paulo”. A chamada de primeira página dava um gosto tipicamente “Folha” à matéria: Ivete Sangalo seria a única artista do carnaval baiano. Ser esse um carnaval de uma artista só, completava o corpo da reportagem amparado em falas de João, tinha um motivo: a artista era branca. Para um baiano que vive e observa o carnaval de Salvador desde 1960, essas declarações parecem absurdas. Passei uma noite na rua em Ondina, onde culmina o circuito Barra-Ondina do carnaval soteropolitano. Brinquei na pipoca ao som e à luz do Psirico, de Daniela, do 8794 e de um outro cujo nome não lembro mas que tinha a ver com música sertaneja. Psirico e Daniela são estrelas das ruas carnavalescas da Bahia pelo menos tão grandes quanto Ivete. Acho que João Jorge usou a Sangalo como metonímia da concentração de riqueza e atenção de que parte da folia baiana desfruta porque ela é atualmente a única diva do nosso carnaval que tem status de estrela nacional. Bem, Daniela também tem. Mas Daniela não é a bola da vez, embora não esteja tão esquecida dos brasileiros de todas as regiões não ligadas à Baía de Todos os Santos quanto Luiz Caldas, que também já foi sucesso do Oiapoque ao Chuí.
Acabo de chegar a Sanremo, na Itália, vindo direto do Recife, onde cantei para a multidão que enche o Marco Zero. A mera visão dessa multidão recifense teria feito a viagem valer a pena. Mas ainda conseguimos interessá-la com nossa mistura de samba carioca (Trio Preto +1), frevo baiano trieletrizado, uma obra-prima de Antônio Maria e os tratamentos indie-roqueiros de canções minhas recentes (bandaCê). Nem quero falar no Recife. O espírito pernambucano está me dando muito.
Impressiona-me que o carnaval da Bahia seja alvo de críticas muito exigentes. O fenômeno da axé music sem dúvida exaltou os ânimos críticos dos brasileiros presunçosos, e isso desencadeou uma avalanche de reações contra a existência de cordas em blocos (coisa que sempre houve, sendo que os desfiles das escolas de samba do Rio chegaram à construção de algo bem mais sólido do que uma mera corda), de camarotes (como se isso tivesse sido inventado na Bahia), de racismo (como se o carnaval fosse um período de expressão privilegiada dessa nossa doença histórica). Estou num hotel à beira-mar, sozinho num quarto, sentindo-me triste por causa de coisas desse período da minha vida. Penso no carnaval de minha terra como em algo de repente distante.
Não apenas Psirico e Daniela são grandes. Xande do Harmonia do Samba e Caudia Leitte também. Sem falar no Chiclete com Banana, Brown e a Timbalada. Por que João Jorge atribui o êxito de Claudia e Ivete ao fato de elas serem brancas se Márcio Vítor é preto e é um rei das ruas e dos vídeos? Meu desejo era discutir aqui, trazendo um pouco de racionalidade, as questões que estão encapsuladas na entrevista de João Jorge e difusas em conversas e artigos. Não tenho muito como me concentrar para fazê-lo bem, já que preciso relembrar a letra e as harmonias de “Piove” e treinar com uma orquestra italiana “Você é linda” para cantar hoje à noite. Isso sem ter dormido quase nada entre o show de terça no Recife e a viagem de quarta/quinta para Sanremo via Lisboa e Nice. Muita coisa. Mas posso lembrar apenas alguns fatos que nos devem fazer pensar.
Os trios elétricos sempre arrastaram mais gente dos que os blocos de corda. Os afoxés estavam morrendo quando Gil fez “Filhos de Gandhi”, e isso atraiu participantes e turistas. Os blocos afro surgiram depois disso. Blocos “brancos”, como Internacionais e Corujas, tampouco tinham grande acompanhamento. Os trios arrastavam a massa. Não tinham corda. Só eles. Logo tiveram patrocínio (marcas de cachaça). A burguesada ia para os bailes. Com a fama nacional dos trios, turistas desbundados vieram a partir de 1970. Os blocos contrataram trios. Ficaram ricos e armaram equipamentos sonoros de show de rock. Viraram estouro federal. Na Avenida Sete, em 1960, os moradores alugavam cadeiras amarradas para quem pudesse pagar para assistir. Não há mais bailes. Há camarotes e blocos que vendem abadás. Há trios (mesmo estelares) que passam sem corda. Os blocos com corda atraem foliões pipoca. Estes, tudo somado, são em número e porcentagem superiores aos do passado. Quem está mesmo reclamando de quê?
A maioria foge do carnaval. A minoria que brinca é imensa. O valor simbólico da festa é inestimável. Carnaval não é uma série de passeatas pró-ordem, conforto ou justiça social. Estou longe agora, mas me orgulho de que se precise golpear tanto o carnaval da Bahia.