domingo, 22 de janeiro de 2012

Dura lex - Ferreira Gullar


A conclusão a que se chega é que, na visão dos donos do país, as leis só valem para o cidadão comum
O ministro Paulo Bernardo, das Comunicações, teve sua carteira de habilitação suspensa, tantas foram as infrações que cometera ao volante, e agora faz um curso de reciclagem para reaver a carteira e voltar a dirigir.
Ele apareceu na televisão e admitiu que havia sido multado muitas vezes por estar permanentemente falando ao celular enquanto dirigia. E, no final da entrevista, admitiu que todo cidadão deve agir dentro da lei.
Muito simpático, mas não me convenceu, porque logo me perguntei: e esse cara, que é ministro das Comunicações e já foi ministro do Planejamento, além de ser marido da ministra-chefe da Casa Civil da Presidência da República, não sabia que é obrigação de todo cidadão obedecer às normas sociais?
Durante todo o tempo dirigia falando ao celular, pondo em risco a vida das pessoas, e não se dava conta de que infringia a lei? Não dá para acreditar.
O que está evidente neste episódio é que o ministro sabia muito bem que infringia a lei e o fazia porque se supunha acima dela, uma vez que, no Brasil, lei só vale para o cidadão comum, não para os ministros de Estado.
Se me detenho nesse episódio é que ele me parece instrutivo. Neste país, onde quase nenhum político é punido -ministro, então, nem se fala- nos deparamos com o ministro das Comunicações sendo obrigado a mostrar que agora conhece as leis do trânsito para só assim reaver a carteira de habilitação.
É comovedor. Pode ser que um marciano, ao vê-lo na televisão admitindo humildemente que mereceu ser punido, volte para seu planeta convencido de que o Brasil é o país da Justiça, onde a lei vale para todos, seja um porteiro de edifício ou uma alta figura do governo.
Nós, porém, que não somos marcianos, não embarcamos nessa. Quando a punição é ter que fazer um cursinho do Detran, o ministro se submete e até, com isso, garante ser eleito no próximo pleito, se for o caso. Quero ver é quando se trata de responder pelo desvio de verbas públicas, que pode levar o bacana à cadeia ou à perda de mandato.
Aí, não; nesses casos, a lei não vale. Pode até ser aberto um processo -se a imprensa puser à mostra o "malfeito"- mas ficará nisso. Veja o processo do mensalão, que já vai para sete anos sem julgamento, e corre-se o risco de que as penas relativas a ele prescrevam.
Se o cara é parlamentar, tem o direito de renunciar ao mandato para não ser cassado e, assim, poder candidatar-se de novo e voltar como representante do povo.
É assim ou não é? Alguém pode levar a sério o Congresso de um país que permite coisas como essas? Provado que o parlamentar usou do mandato para obter vantagens ilícitas, atentar contra a ética, em vez de ter seu mandato cassado e ser considerado indigno de representar o povo, pode ele escapar à punição renunciando ao mandato.
E assim estará habilitado a candidatar-se de novo e voltar ao Congresso. Não dá para acreditar. O Congresso Nacional criou uma norma que favorece a impunidade de quem atenta contra os valores do próprio Congresso.
A conclusão a que se chega, inevitavelmente, é de que, na visão dos donos do país, as leis só valem para o cidadão comum, já que ministro, deputado, senador, governador, prefeito... esses estão acima da lei, fora de seu alcance.
É como se tivéssemos voltado a época remota das primeiras monarquias. Se é verdade que nenhum deles exibe uma coroa na cabeça, nem por isso deixam de constituir uma casta que se apossou da máquina do Estado e faz dela o uso que lhe convém. Nosso país foi apropriado por uma casta, que o governa em seu próprio benefício.
O diabo é que, diferentemente da época monárquica, agora existem jornais e televisão, que, inconvenientes como são, vivem fuçando aqui e ali, até descobrirem o "malfeito" e transformá-lo em notícia.
Aí, então, alguma coisa terá que ser feita em respeito à moral e aos bons costumes, mesmo que só para fazer de conta.
Como é do interesse geral do poder que não se torne hábito condenar ministros ou parlamentares, sempre haverá um jeito de conciliar as coisas: abafar o escândalo e não punir o culpado.
Mas, se o delito praticado foi falar ao celular enquanto dirigia, aí não tem perdão, "dura lex sed lex".
Da Folha