sábado, 19 de outubro de 2024

Viagem da política às terras do centro - Muniz Sodré

 Glosa de um deputado baiano, décadas atrás: entre a Encíclica Mater et Magistra (do Papa João 23, com o ponto de vista da igreja sobre a questão social) e "O Capital", de Karl Marx, o PSD ficava com o Diário Oficial. Uma boutade até hoje pertinente a essa sigla. O PSD de Gilberto Kassab autodefine-se como nem de esquerda, nem de direita, nem de centro. De nada, em suma, mas próximo de uma oficialíssima emenda Pix.

Gilberto Kassab. presidente do PSD, em encontro de Ricardo Nunes (MB) - Rubens Cavallari - 8.out.24/Folhapress

É viável, no entanto, presumir a entrada na política de uma cultura "centrã", menos polarizante ou raivosa. O termo evoca um português quinhentista, algo fora de época. Mas o "nada", vitorioso nas eleições em 878 prefeituras, é tudo de que Kassab precisa para inscrever o seu PSD na campanha presidencial.
Pode-se dizer que os 156 milhões de votantes deram algo a pensar à política nacional. O cômputo geral comparece na imprensa como um "passeio" da direita. Mas com exceção de alguns extremistas, o bolsonarismo da "destruição criativa" deu lugar a uma direita centrada no status quo local, em grande parte, por emendas com dinheiro direto no caixa das prefeituras. Vale frisar que o centro é o berço da direita.

O fato é que da vida local partem demandas cada vez mais fortes, obscurecidas na cena parlamentar. Já em meados do século passado circulava nos EUA o adágio "toda política é local" ("all politics is local", difundido pelo antigo parlamentar democrata Ted O´Neill). Entre nós, Ulisses Guimarães disse mais ou menos o mesmo, trocando local por município.

Mas localismo difere de municipalismo, isto é, da divisão política, administrativa e territorial sob a égide do Estado, que é política concebida de cima para baixo, sem contemplar economias vernaculares (cooperativas, camponesas) e solidárias. Não se trata do poujadismo francês (movimento de defesa de comerciantes e artesãos na década de 1950 passada), e sim da mobilização de lugares concretos capazes de se oporem à abstração dos partidos nacionais no sistema parlamentar. Isso poderia sugerir uma "endogeopolítica" à base de espaços autônomos, articulados em rede para as disputas no centro estatal.

O localismo como passo para a recomposição política implica rearranjo dos circuitos comunitários da comunicação, onde fermentam formas novas de sentir, alheias aos agenciamentos tradicionais. Implica linguagem de povo. A direita conseguiu captar uma parte do fenômeno, a esquerda permaneceu no bunker de verdades intelectuais.

Uma praxis progressista, na contramão do trânsito ultradireitista num país já estruturalmente conservador, requer uma nova concertação de frentes amplas capazes de mobilizar a realidade civil. Uma realidade que se faz mais evidente nos espaços de falência do modelo federativo e que está além das meras aparências de civilismo. Ou seja, a mobilização depende de outra linguagem política.

A perspectiva progressista é de que o localismo não favoreça a estagnação no centro enquanto umbigo, que fica no meio e não serve para nada. Impõe-se politizar o desenho de lugares alternativos, desde o comunitário até o virtual. Isso ainda não aconteceu. Mas as eleições municipais deram um recado ligeiro de moderação, de arrefecimento do ódio. Disso é simbólico, mesmo em meio a divergências e acusações no debate, o abraço inesperado de Boulos (PSOL) e Nunes (MDB).