sábado, 3 de junho de 2023

Carta a um escritor que aprecio - José Eduardo Agualusa

 


Meu caro Itamar,

Mal nos conhecemos. Não somos amigos; permite-me, contudo, que fale contigo como se fôssemos. Li a resenha da Lígia G. Diniz ao teu novo romance, “Salvar o fogo”, publicada na revista Quatro Cinco Um. Depois, li a tua resposta à referida resenha, publicada na coluna que assinas regularmente, na Folha de S.Paulo.

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A melhor maneira de reagir aos aplausos é agradecendo, com um sorriso — e esquecê-los logo a seguir. Elogios são agradáveis, mas distraem-nos do essencial — a própria escrita —, e não nos ensinam nada. Já as críticas negativas, essas sim, parecem-me muito importantes.

A crítica literária no espaço da língua portuguesa está, desde há muitos anos, em amargo declínio. Cresci, enquanto leitor, numa época em que qualquer grande jornal trazia, todas as semanas, várias páginas dedicadas à divulgação das novidades literárias. Nessa época, nomes como Antonio Candido, no Brasil; Eduardo Prado Coelho, em Portugal; ou David Mestre, em Angola, eram conhecidos e respeitadíssimos. Por um lado, formavam leitores; por outro, ajudavam os escritores a descobrirem a sua própria obra, e a melhorá-la.

Há resenhas negativas excelentes, e outras disparatadas, maldosas ou agressivas. E há resenhas positivas excelentes e outras imbecis, condescendentes ou paternalistas. As resenhas positivas disparatadas não ajudam ninguém — só atrapalham. As resenhas negativas disparatadas podem ter pelo menos o mérito de contribuir para que o escritor não se deixe dominar pela vaidade e pela arrogância.

Assim, deveríamos repudiar com horror os elogios, e agradecer, com sincera alegria, as críticas negativas — incluindo as idiotas.

A resenha da Lígia G. Diniz, contudo, não tem nada de idiota. Acho-a informada, inteligente, honesta e rigorosa — o que não significa que concorde com ela. Para o caso, é irrelevante se concordo ou não.

Atacar um crítico por fazer o seu trabalho prejudica-nos a todos, leitores e escritores, sobretudo numa época em que já temos tão poucas pessoas praticando, com profissionalismo, essa arte em decadência. O teu ataque torna-se mais difícil de aceitar a partir do momento em que recorres à autoridade da posição que ocupas hoje, enquanto um dos escritores de maior sucesso de toda a moderna literatura em língua portuguesa — um dos mais amados, mais vendidos, mais protegidos e premiados.

Pior é a acusação de racismo dirigida contra a Lígia Diniz. Cito a tua coluna: “O editor branco escolhe a crítica branca para resenhar um romance atravessado pela raça e pelo colorismo. Eles precisam nos lembrar que na literatura brasileira não há espaço para nós, então o pacto é deixar a avaliação para eles.”

Como assim?!

O combate antirracista, e o combate contra a extrema direita em geral, sai prejudicado sempre que alguém na tua posição — relembro: uma posição de grande poder e privilégio — lança acusações deste gênero, absurdas e levianas, para responder a uma opinião discordante. No caso, contra alguém que não tem o teu poder, nem de longe nem de perto.

Aceita um abraço, desde Angola, deste teu leitor e admirador.