Em 14 de fevereiro de 2022, no Valor Econômico (“O nudge da barbárie contra os negros”), relatei a saga de um negro de classe média. Ilustrei com meus próprios casos. Um deles ocorreu num voo da Latam entre Brasília e Florianópolis. Um dos comissários, ao me ver sentado na poltrona 2C, exigiu que lhe mostrasse o cartão de embarque. Perguntei se tinha feito o mesmo com os demais passageiros, todos brancos, de igual classe de assentos. Ele franziu a testa e se foi.
Ao reparar no evento de 28 de abril, com Samantha Barbosa, expulsa de um voo da Gol entre Salvador e São Paulo, percebi que escapei por pouco. O comissário poderia ter se queixado ao piloto por minha resistência. Eu teria sido expulso do voo. E algemado.
As empresas de transporte aéreo são brutas com o negro. No episódio de Samantha, a tripulação, incluindo o comandante, não se empenhou para encontrar espaço, na cabine, para uma simples mochila.
Explico. Samantha tinha opções para sua bagagem, que, é certo, não cabia embaixo da poltrona à sua frente. Poderia ter embarcado antes, mas isso dependeria do tipo de passagem, se daria ou não acesso prioritário ao avião. Também poderia ter retirado o notebook e despachado a mochila, como exigiam os comissários.
Mas, apesar do bate-boca, tudo isso foi resolvido quando dois passageiros, solidários, cederam espaço para a bagagem da Samantha. Por que, ainda assim, a tripulação, sobretudo o comandante, resolveu expulsá-la do avião?
Aqui entra o racismo. Nos séculos XVIII e XIX, o escravizado ia para o pelourinho (apanhava em público) quando se rebelava ou não fazia algum tipo de trabalho, mesmo que outros fizessem por ele. As chibatadas eram a forma de humilhar o resistente e de diminuir uma raça.
O foco da tripulação da Gol era humilhar Samantha, mesmo com o impasse já solucionado. A humilhação pública, fazendo-a ser escoltada pela polícia, é o pelourinho contemporâneo. Esse tipo de decisão, para o branco racista, é instintivo, que se aprende em casa.
O argumento da tripulação era a segurança do voo. Desculpa esfarrapada. Como a maior parte dos passageiros estava claramente do lado da Samantha, expulsá-la deixou o voo inseguro, dado o risco de um motim. O objetivo do piloto, portanto, não era a segurança, mas humilhar Samantha. E ele tinha do seu lado a força da Polícia Federal, que a intimidou com um par de algemas.
Com efeito, faltou à tripulação a empatia que a própria Gol, em voo do dia 3 de fevereiro, também entre Salvador e São Paulo, exigiu de alguém que não quis ceder seu assento. Teve puxão de cabelo, tapas e pescoções. Para a Gol, a empatia — que não foi por ela praticada — não vale para uma jovem negra, o que implica racismo disfarçado.
Engana-se quem acha que agora qualquer um viaja de avião. Nos voos domésticos, nem 15 de 200 lugares são ocupados por negros. E a tripulação é formada quase sempre por brancos. É rara a presença de um negro entre os pilotos. Assim, um avião com muitos passageiros negros deixa os tripulantes num dilema — servir o negro, quando se acostumaram com brancos.
A cabine de um avião, por tudo isso, é hostil ao negro. Por certo, menos que as batidas policiais (que caçam o negro), ou que a Polícia Rodoviária Federal (que o sufoca até a morte), ou que as lojas de luxo (onde os seguranças atalham o negro), ou que as redes de supermercado (que o matam por espancamento). Do meu lado, como preciso viajar, tomarei cuidado com a tripulação de voo, de qualquer empresa.
*Edvaldo Santana, doutor em engenharia de produção, foi diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica