Machado de Assis |
Na noite em que faleceu Machado de Assis, quem penetrasse na vivenda do poeta, em Laranjeiras, não acreditaria que estivesse tão próximo o triste desenlace da sua enfermidade. Na sala de jantar, para onde dava o quarto do querido mestre, um grupo de senhoras —ontem meninas que ele carregava nos braços carinhosos, hoje nobilíssimas mães de família— comentavam-lhe os lances encantados da vida e reliam-lhe antigos versos, ainda inéditos, avaramente guardados nos álbuns caprichosos.
As vozes eram discretas, as mágoas apenas rebrilhavam nos olhos marejados de lágrimas, e a placidez era completa no recinto, onde a saudade glorificava uma existência, ante da morte.
No salão de visitas viam-se alguns discípulos dedicados, também aparentemente tranquilos.
E compreendia-se desde logo a antilogia de corações tão ao parecer tranquilos na iminência de uma catástrofe. Era o contrário da própria serenidade incomparável e emocionante em que ia, a pouco e pouco, extinguindo-se o extraordinário escritor.
E gentilissimamente bem durante a vida, ele se tornava gentilmente heroico na morte…
Mas aquela placidez augusta despertava na sala principal, onde se reuniam Coelho Netto, Graça Aranha, Mário de Alencar, José Veríssimo, Raimundo Correa e Rodrigo Otávio, comentários divergentes. Resumia-os um amargo desapontamento.
De um modo geral, não se compreendia que uma vida que tanto viveu as outras vidas, assimilando-as através de análises sutilíssimas, para no-las transfigurar e ampliar, aformoseadas em sínteses radiosas —que uma vida de tal porte desaparecesse no meio de tamanha indiferença, num círculo limitadíssimo de corações amigos.
Era pelo menos desanimador, tanto descaso —a cidade inteira, sem a vibração de um abalo, derivando imperturbavelmente na normalidade de sua existência complexa— quando faltavam poucos minutos para que se cerrassem 40 anos de literatura gloriosa…
Neste momento, precisamente ao anunciar-se esse juízo desalentado, ouviram-se umas tímidas pancadas na porta principal da entrada.
Abriram-na. Apareceu um desconhecido: um adolescente de 17 ou 18 anos anos, ao máximo. Perguntaram-lhe o nome. Declarou ser desnecessário dizê-lo.
Ninguém ali o conhecia; não conhecia ele por sua vez ninguém; não conhecia o próprio dono da casa, a não ser pela leitura de seus livros, que o encantavam. Por isso, ao ler os jornais da tarde que o escritor se achava em estado gravíssimo, tivera o pensamento de visitá-lo.
Relutara contra esta ideia, não tendo quem o apresentasse: mas não lograra vencê-la. Que o desculpassem, portanto. Se lhe não era dado ver o enfermo, dessem-lhe ao menos notícias certas de seu estado.
E o anônimo juvenil —vindo da noite— foi conduzido ao quarto do doente. Chegou. Não disse uma palavra. Ajoelhou-se. Tomou a mão do mestre: beijou-a num belo gesto de carinho filial. Aconchegou-o depois por algum tempo ao peito. Levantou-se e, sem dizer palavra, saiu.
Astrojildo Pereira |
À porta, José Veríssimo perguntou-lhe o nome. Disse-lhe. Mas deve ficar anônimo. Qualquer que seja o destino desta criança, ela nunca mais subirá tanto na vida. Naquele momento, o seu coração bateu sozinho pela alma de uma nacionalidade. Naquele meio segundo —no meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis, aquele menino foi o maior homem de sua terra.
Ele saiu —e houve na sala, há pouco invadida de desalentos, uma transfiguração.
No fastígio de certos estados morais concretizam-se às vezes as maiores idealizações.
Pelos nossos olhos passara a impressão visual da Posteridade...