quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Mary del Priore: 'As mulheres que não querem ter filhos rompem 500 anos de lógica patriarcal no Brasil'

 

A partir da esquerda: Brites de Albuquerque, que comandou a capitania de Pernambuco por 40 anos; Auta de Souza, poeta simbolista com livro publicado em 1900; Luciana de Abreu, professora em Porto Alegre e primeira mulher a defender em público a emancipação feminina, em 1872 Foto: Arte de Ana Luiza Costa



# Renata Izaal

Em 1554, a portuguesa Brites de Albuquerque assumiu o comando da capitania de Pernambuco após a morte do marido, Duarte Coelho, o fundador de Olinda. Nos 40 anos de sua administração, as terras se tornaram as mais lucrativas da Colônia. Em 1872, a professora Luciana de Abreu mantinha uma bem-sucedida escola particular em Porto Alegre. Quando subiu à tribuna da Sociedade Partenon Literário, tornou-se a primeira mulher a discursar em público para defender a emancipação feminina. A escritora Auta de Souza, mulher negra nascida no Sertão do Rio Grande do Norte e criada pela avó, publicou seus poemas no livro “Horto”, lançado em 1900. A obra, com prefácio de Olavo Bilac, teve ótima repercussão na época e foi impressa também em Paris.

Brites, Luciana e Auta construíram trajetórias alternativas ao papel secundário que a sociedade brasileira desenhou para elas. Como as três, ao longo da História do Brasil foram muitas as mulheres que afirmaram sua liberdade e exerceram seus potenciais, apesar das restrições impostas pelo patriarcado. É sobre elas que a historiadora Mary del Priore se debruça no recém-lançado “Sobreviventes e Guerreiras: uma breve história da mulher no Brasil de 1500 a 2000” (Ed. Planeta).

— Ao longo da História do Brasil, as circunstâncias foram muito adversas para as mulheres. Mas os documentos históricos não mentem: está registrado como, mesmo nos momentos mais difíceis, elas reagiram, buscaram letramento, investiram na educação dos filhos e partiram do privado para gradualmente conquistar o espaço público — afirma del Priore, que decidiu escrever o livro como uma alternativa às terríveis estatísticas brasileiras. — Uma mulher é assassinada a cada duas horas e tantas outras são perseguidas e agredidas. É um exercício de autoestima mesmo, para levantar a nossa bola. Eu quero lembrar que a história da mulher no Brasil é cheia de conquistas e que essa caminhada é muito bonita também.

Uma caminhada que precisou driblar a família patriarcal e a Igreja Católica. Consigo, os colonizadores portugueses trouxeram ao Brasil uma ideia de família que tinha como base o sacramento do matrimônio como fora definido no Concílio de Trento. Ou seja, um instrumento de luta contra a Reforma Protestante e um difusor dos valores do catolicismo. A família patriarcal brasileira era mais forte que o poder público e, embora a dominação masculina fosse regra, muitas matriarcas subverteram o mito da mulher submissa.Mas não foi só entre mulheres com recursos que isso se deu. Ao contrário.

Embora o ideal católico da mulher dedicada à família e obediente ao marido persista há séculos,trabalhadoras brasileiras precisaram contorná-lo para ganhar o sustento. No século XVIII, era comum mulheres mais velhas comandarem grupos familiares, impondo regras econômicas e morais e preservando tradições. Trabalhando em casa ou na rua, sustentavam filhos e outros dependentes. Mulheres negras estabeleceram famílias e pequenos negócios, usando seu dinheiro para educar os filhos e comprar a liberdade de seus companheiros de luta. Já nas primeiras décadas do século XX, operárias tiravam do trabalho nas fábricas o sustento de suas famílias. Segundo o Censo de 1920, as mulheres representavam mais de 50% da força de trabalho nas tecelagens brasileiras. Um cotidiano que ressoa no Brasil de hoje, onde 45% das famílias são chefiadas por mulheres, segundo dados do IBGE de 2018

— As condições materiais tornaram essas mulheres dinâmicas. Obviamente, não estamos falando das mulheres  da elite, da Corte. É preciso desmistificar essa ideia de que a sociedade brasileira era constituída apenas por senhoras brancas e negras escravizadas. Desde o Brasil Colônia havia uma grande massa de trabalhadoras que conduziam seus negócios, empreendimentos e ações judiciais — explica del Priore, apontando o papel importante das mulheres negras livres nesse contexto. — No final do século XVIII, a segunda classe com mais recursos na capitania de Minas Gerais era a formada por mulheres negras forras. Elas compravam a própria alforria, bens, tinham propriedades e faziam negócios. Muitas delas vinham de etnias matrilineares e, mesmo em nações africanas que eram patriarcais, havia uma tradição de mulheres tocando os negócios.

Para a historiadora, essas mulheres  são o nó górdio que segurou as estruturas de trabalho e familiares, ou seja, elas organizaram o Brasil ("A chefia de família por mulheres é uma das coisas mais antigas que temos nesse país") investindo sobretudo na educação dos filhos. Maria Patrícia, negra alforriada que tinha uma quitanda no centro do Rio, juntou os recursos que possibilitaram ao filho estudar Direito na Sorbonne, em Paris. Francisco de Sales Torres Homem tornou-se  um importante político do Segundo Reinado, ministro da Fazenda e nomeado Visconde de Inhomirim depois de sua atuação no Senado durante as discussões da Lei do Ventre Livre.

Mas todo o investimento feminino em sua independência e na dos seus não aconteceu sem tentativas de retrocesso:

— No governo Vargas, por exemplo, houve uma campanha enorme para tirar as mulhres do mercado de trabalho. Elas já eram operárias na fábrica e ganhavam o seu dinheiro, mas a ideia era que ficassem em casa parindo os futuros soldados do Exército Brasileiro. Esse discurso aconteceu de forma sistemática até a ditadura, quando as marchas pela família insistiam que o lugar das mulheres era dentro de casa, cuidando dos filhos. Foram quase 500 anos de perpetuação de uma ideia da mulher como mãe, por isso acho que a grande inovação hoje são as mulheres que não querem ter filhos. Elas rompem com essa tradição.

Mary del Priore cita momentos históricos que foram pontos de virada para as mulheres brasileiras: a decadência do ciclo do café, que leva ao declínio da figura do patriarca; as conquistas dos movimentos abolicionista, republicano e sufragista; a chegada da pílula e a discussão sobre a sexualidade feminina e o planejamento familiar; a entrada em massa das mulheres nas universidades e no mercado de trabalho; e a atual horizontalização do debate na sociedade em redes.

— O pano de fundo disso tudo é a discussão sobre a presença e o declínio do patriarcado. É óbvio que ele não vai terminar por decreto, mas caminhamos para um mundo de maior inteligência. Vai ser bom para os homens também já que o papel de provedor e a virilidade que exige ereções constantes é um tiro no pé deles mesmos. É um fenômeno transcultural, mas o patriarcado está no final — reflete.

A historiadora acredita que, nesse cenário, ainda há muito a ser estudado e escrito sobre a história das mulheres brasileiras, tema que ficou mais forte na Academia a partir dos anos 80, sob influência da historiografia francesa e dos estudos de gênero:

— Até os anos 1970, o foco estava no econômico, na produção, na dependência. Mas, apartir dos anos 1980, com a influência da historiografia francesa, dos estudos de mentalidade, cultura e de gênero, o tema da mulher chegou. — explica del Priore, para quem houve uma feminização muito grande nas Ciências Humanas. — Há muitas mulheres trabalhando e orientando teses, apesar desse govern oestar bombardeando as universidades. Há muita gente boa trabalhando para que os cursos continuem funcionando e para que os alunos continuem recebendo conhecimento.

— Os nossos arquivos estão abandonados, precisando de um socorro que este governo não vai dar. Mas eles continuam sendo o grande interlocutor do historiador. É indo aos arquivos que nós estamos construindo sempre uma nova História. A História, eu digo, só se pode escrever no gerúndio. Estamos sempre descobrindo documentos, lendo e relendo. A tarefa é infinita.