sábado, 21 de março de 2020

JOSÉ EDUARDO AGUALUSA - Paradoxos do fim do mundo

A notícia de que o Estado Islâmico terá aconselhado os seus operacionais a evitar território europeu, devido à pandemia do coronavírus, é uma das muitas ironias criadas por esta nova realidade em que nos movemos. “Lavem as mãos e confiem em Deus” — recomendaram os dirigentes da organização aos aterrorizados terroristas infiltrados no ocidente, e que agora não conseguem sair.
No momento em que escrevo esta coluna muitos países africanos anunciam o fecho das suas fronteiras a passageiros provenientes da Europa. Na Mauritânia, um grupo de italianos que fugiam da pandemia foi expulso para o país de origem. No Gana, dois outros italianos foram também extraditados. No aeroporto de Luanda, aconteceram tumultos, quarta-feira, depois que viajantes procedentes de Portugal recusaram ser conduzidos para um dos centros de quarentena criados pelo governo angolano. Entretanto, também Angola fechou as portas aos europeus.
Infelizmente, não é nada certo que África permaneça por muito mais tempo indiferente ao vírus. A África do Sul já conta com várias dezenas de pessoas infetadas. Moçambique, cuja capital, Maputo, fica a menos de duas horas da fronteira sul-africana, começa a preparar-se para a pandemia. A grande vantagem de África é a juventude da sua população. Em contrapartida, há milhões de pessoas mal nutridas, enfraquecidas, padecendo de doenças que afetam o sistema
imunológico. Ainda persiste a esperança de que o calor, ou algum outro milagre, possa atrasar a propagação do vírus até surgir uma vacina. Caso contrário, o desastre será imenso.
A vingança africana pode ter sido breve, mas ainda assim serviu para que alguns europeus se colocassem pela primeira vez na pele dos milhares de refugiados que, antes desta crise, vinham tentando atravessar o continente, e depois o Mediterrâneo, para alcançar a Europa. Outro paradoxo irônico do atual fim do mundo tem a ver com os benefícios para o ambiente que o coronavírus está a induzir. O mundo em quarentena — com aviões em terra, transatlânticos ancorados, fábricas fechadas — está emitindo menos um milhão de toneladas de CO2 por dia. Na China, nas regiões mais afetadas pela pandemia,
a qualidade do ar melhorou tanto que o número de pessoas mortas por doenças respiratórias deverá este ano ser bastante inferior aos anteriores.
É um horror utópico, ou a mais utópica das distopias. Uma mistura entre o apocalipse dos mortos vivos e um sonho feliz de Greta Thunberg.
Sentado numa cadeira de praia, no meu pátio de Lisboa, contemplo perplexo o abrupto desmoronar da civilização. É assustador, sim, mas está-se bem ao sol. Não há mais aviões roncando acima das nossas cabeças. Pássaros cantam nas ramadas altas. O céu brilha, azulíssimo, como se tivesse sido envernizado esta manhã.
Se o homem desaparecesse por completo da superfície do planeta este ficaria mais bonito. Reconhecer isto é reconhecer um fracasso. Talvez, depois que tudo serenar, a humanidade perceba que é possível um outro começo, mais próximo dos sonhos de Greta, com menos aviões, menos consumo, trabalho a partir de casa, mais solidariedade e mais harmonia.