domingo, 14 de janeiro de 2018

‘Países de merda’ - DORRIT HARAZIM

‘Não sei o que significa a palavra ‘permanente’”, disse Donald Trump ao “Wall Street Journal” esta semana, acrescentando que poderia citar como exemplo uns 20 inimigos declarados que mais tarde, “de repente, passaram a ser meus melhores amigos”. Na mesma entrevista, ele proclamou ter “uma relação muito boa” com o líder da Coreia do Norte, Kim Jong-un, a quem volta e meia se refere como o “homenzinho-foguete”, que governa uma “quadrilha de criminosos” e merece destruição total.
A delirante entrevista teria tido maior repercussão se não tivesse sido atropelada pelo vazamento do comentário sobre “países de merda”, atribuído a Trump em reunião fechada com congressistas e senadores dos dois partidos.
A pauta central da negociação era a nevrálgica questão dos imigrantes. Para o atual governo, quanto mais barreiras seletivas, melhor. A semana começara com a revogação da permanência de 200 mil salvadorenhos admitidos temporariamente após o terremoto de 2001. Já havia atingido 60 mil haitianos acolhidos depois do terremoto de 2010, e afetará refugiados de catástrofes ou guerras de oito outros países.
Trump também decidiu acabar com a popular “loteria anual de green cards”, ou DV (Diversity Immigration Visa Program), que desde 1996 beneficia 50 mil cidadãos de países com pouca representatividade na população dos Estados Unidos. Por mais de duas décadas, esse programa servia de vitrine para quem defende que a riqueza e a força de uma nação são compatíveis com uma grande diversidade populacional.
Mas Donald Trump pensa o contrário, e não é de hoje. Também por isso ele foi eleito para a Casa Branca.
Esta semana, contudo, ele conseguiu se superar em incontinência verbal contra imigrantes indesejáveis, ao chamar de “países de merda” o Haiti, El Salvador e todo um continente — a África. Como candidato ou como presidente, ele já acusara a China de “estuprar os Estados Unidos”, a Alemanha de ter uma “criminalidade em desordem total”, a Inglaterra de não saber cuidar da própria casa, e a França de ter tornado Paris perigosa para visitantes.
Só que, desta vez, ele destapou o torpor, o dar de ombros generalizado resultante de 11 meses de surtos contínuos da Casa Branca. Tornou-se impossível relevar o que fora ouvido, ignorá-lo como apenas um linguajar chulo a mais, “coisa do Trump”.
Anderson Cooper, apresentador do programa “360”, da rede CNN, usou uma citação do escritor negro James Baldwin em seu contundente editorial de repúdio às frases que Trump procurou negar. “O inimigo mais feroz que a justiça pode ter é a ignorância somada ao poder”, escreveu o autor de “Giovanni’s Room”.
As frases, dirigidas aos parlamentares que tentavam negociar um abrandamento das medidas, foram vazadas por participantes da reunião:
“Por que temos toda essa gente de países de merda vindo para cá?”
“Por que queremos pessoas do Haiti aqui?”
Segundo o “New York Times”, em junho passado, o presidente já fizera comentários semelhantes no mesmo Salão Oval. Sobre 15 mil haitianos que haviam imigrado desde sua posse: “Todos têm Aids”. Sobre 40 mil migrantes temporários da Nigéria: “Que voltem para suas cabanas na África”. Para Anderson Cooper, autor de memorável cobertura do terremoto haitiano ocorrido oito anos atrás, e no qual morreu a brasileira Zilda Arns, há um denominador comum de todo esse palavreado.
“A Casa Branca acha que os comentários do presidente serão bem recebidos junto à sua base eleitoral. Isso não os torna menos ignorantes nem menos racistas”, disse Cooper. “Eles não são raciais. Tampouco são racialmente preconceituosos. Eles são racistas”.
O jornalista Jonathan M. Katz é autor de “How the World Came to Save Haiti and Left Behind a Disaster” (Como o mundo veio para salvar o Haiti e deixou para trás um desastre), ainda sem edição no Brasil. Único correspondente americano naquele país quando ocorreu o terremoto, Katz recorreu à forma de comunicação preferida de Trump para disparar um curso simplificado de história do Haiti: em 15 tweets.
“...Para comparar favoravelmente o PIB da Noruega com o do Haiti”, tuitou o jornalista, “é preciso não saber nada sobre a história mundial... É preciso desconhecer que a colônia francesa que depois se tornou o Haiti forneceu a riqueza que alimentou o Império Francês — e dois terços do açúcar e três quartos do café consumido pela Europa... É preciso não saber que o Haiti nasceu de uma revolução contra esse sistema... Que o Haiti concordou em pagar 150 milhões de francos de ouro de indenização aos proprietários de terras para conseguir sua liberdade... e pagou a dívida ao longo de quase todo o século XIX... Que em 1914 os bancos credores levaram o presidente Wilson a enviar os Fuzileiros Navais para esvaziar as reservas de ouro haitianas... originando a ocupação militar do país por 19 anos... o apoio americano a ditadores, golpes, mais invasões no século XX... Em resumo, é preciso desconhecer POR QUE o Haiti é pobre e POR QUE os Estados Unidos (e a Noruega) são ricos... Pior é sequer ter se interessado em saber... É presumir que o Haiti é pobre por natureza, é um país de gente corrupta... Pois cabe dizer em alto e bom som por que ele é assim: porque haitianos são negros”. Cataplum. Na sexta-feira, antes de seguir para sua propriedade de Mar-a-Lago, na Flórida, Trump tinha na agenda o primeiro check-up obrigatório para todo ocupante da Casa Branca. Dos 45 presidentes americanos, ele é o mais velho (71 anos) a assumir o cargo.
Mais de 70 psiquiatras, psicólogos e profissionais de saúde mental enviaram uma carta ao almirante Ronny Jackson, o médico da Presidência, sugerindo que Trump também fosse submetido a uma avaliação neurológica e psiquiátrica.
Dificilmente serão atendidos. Pena, pois o resultado interessaria tanto a “países de merda” e países-Noruega.
Dorrit Harazim é jornalista