“Já li o texto do nosso amigo”, disse Indaira. Qual é o título da peça? “O pântano e o labirinto.” Grande título! Quase toda a humanidade cabe nele…
“É um exagero”, ela discordou. “Mas alguma coisa deste Brasil está na peça… Cenas da anomia nacional…”
Quanta coragem do nosso amigo, Indaira! Mal consigo escrever cinco linhas sobre um dos meus pássaros preferidos. Outro dia um sabiá posou na romãzeira que a Célia me deu e começou a cantar. Às vezes o canto de um pássaro é uma melodia para sempre. Os sons lembravam o sopro de uma flauta… De lembrança em lembrança, recordei um poema do Rûmi… “Rûmi?” Jalal Udin Rûmi, o grande poeta persa, admirado por Hafiz… Dois místicos admirados por Manuel Bandeira. Você deve ter lido “Gazal em louvor de Hafiz”.
“O país está se esfacelando, e você vive embriagado pelo êxtase místico, pelos gazais… É desilusão?”
É apenas poesia, eu disse. O sonho de uma aventura. Mas por que “O pântano e o labirinto”?
“Estamos num pântano, não podemos andar… Os três poderes são o que são, ou o que sempre foram. E labirinto… porque estamos perdidos… E o que é pior, perdidos e surdos. Não há vozes, só barulho… Todos falam ao mesmo tempo, ninguém se entende, ninguém escuta… É aí que surgem os oportunistas, os que dizem não ser políticos… Mas perigoso mesmo é um velhaco, saudoso da ditadura: o tenebroso deputado homofóbico, o apologista do estupro, da tortura, do ódio aos quilombolas e índios… E nada acontece... Não é incrível?”
É totalmente crível, Indaira. Uma parte das pessoas pensa assim mesmo, como esse líder de araque. O ódio atrai certo tipo de gente... Outra parte cultiva o respeito e a compreensão, mais que a tolerância. Porque só a tolerância não basta. E há uma terceira parte, a mais sofrida e misteriosa… A parte dos desesperados… Milhões de pessoas tentando arranjar um emprego, essa coisa rara no país… Aliás, em quase todo o planeta. “Há saída neste labirinto?” Não sei. Quem leu o texto da peça foi você. Sou apenas um espectador. Quer dizer, serei um espectador quando a peça for encenada. Sair do pântano e pisar em terra firme é possível; sair do labirinto é quase inconcebível… E, pensando bem, pra que sair? Não é melhor tentar encontrar outros caminhos e permanecer no labirinto?
“Na peça do nosso amigo todos os caminhos estão bloqueados.”
Todos? Ele se esqueceu da liberdade dos que estão perdidos. E da poesia… O fio de Ariadne, o amor por Teseu. Amor ferido ou traído…
“O amor… Nosso amigo vai dizer que você não passa de um reles romântico.”
É verdade… Um romântico com pés no chão, ou com o corpo afundado no pântano, mas sempre pensando em outros caminhos. Não há amor nem traição nessa tragédia? Nem mesmo uma cena amorosa, com uma taça de vinho envenenado?
“Amor na anomia? Nessa guerra latente entre irmãos? Parece que os brasileiros viraram Caim e Abel… O que se vê no espelho do país? Obscurantismo, linchamentos, risadas luciferinas… O paraíso tropical é inferno há muito tempo.”
Todos os paraísos estão perdidos, Indaira. O fio de Ariadne é o que nos resta. O amor e a liberdade. Vamos sugerir ao nosso amigo dramaturgo estas frases do João Guimarães Rosa: “Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura”.