sexta-feira, 22 de maio de 2015

Uma sociedade que se mata - LUIZ FERNANDO VIANNA

RIO DE JANEIRO - De onde talvez menos se esperasse, surgiu a voz mais lúcida sobre o assassinato do médico Jaime Gold, num assalto na terça (19), no entorno da Lagoa Rodrigo de Freitas.
    Mesmo sob o impacto de ter perdido de forma brutal o pai de seus dois filhos, Márcia Amil disse ao jornal "O Dia": "Sei que Jaime foi vítima de vítimas, que são vítimas de vítimas. Enquanto nosso país não priorizar saúde, educação e segurança, vão ter cada vez mais médicos sendo mortos no cartão postal do país. E não só médicos. Afinal, morrem cidadãos todos os dias em toda a cidade, não só na zona sul".
    Em vez do ódio, a clareza. Em vez do etnocentrismo, a visão ampla. Em vez do "olho por olho, dente por dente", cabeça e coração.
    No mesmo dia da morte de Gold, foram assassinados numa padaria, no morro do Dendê (zona norte), um estudante de 13 anos e um trabalhador de 24 --que tinha ido comprar pão para o filho. Um helicóptero da polícia disparava tiros, e eles correram para se proteger. Um policial entrou no lugar e os fuzilou.
    Não se trata de uma morte ser mais importante do que outra. E sim de que uma morte é tão importante quanto outra. Esse "tão" significa cidadania, direito à vida e esperança (vã) de que ainda venha a emergir uma nação desse pântano em que chafurdamos mais e mais.
    Nesta quinta (21), o jornal "O Globo" disse que a morte de Gold "choca o Rio" e lhe dedicou seis páginas. Para as mortes do Dendê, duas colunas escondidas numa página par. É um retrato do Rio e do Brasil.
    "A imagem mítica do brasileiro simpático existe só no samba. Na relação entre as pessoas, sempre foi violento. A sociedade brasileira não é simpática, é uma sociedade que se mata. Esse é o Brasil que vemos hoje na internet", resumiu o sociólogo espanhol Manuel Castells a esta Folha, na segunda (18).