sábado, 20 de abril de 2024

Criminal country - Muniz Sodré

 


Inconcebível que 129 parlamentares sejam favoráveis à autoria da execução da vereadora Marielle Franco

Num país cuja república rezou pelo catecismo positivista, apostando no progresso como desenvolvimento da ordem, é tentador invocar o evolucionismo de Augusto Comte para abordar situações sociais. Ainda que a involução dê a tônica. É o caso da segurança pública, que vira questão nacional, decisiva para avaliação do nível de vida, tanto por autoridades como por humildes componentes da cidadania urbana. Talvez seja hoje o único ponto de consenso entre elites e povo.

O problema é do país inteiro, mas o Rio oferece maior espelhamento pela magnitude da promiscuidade entre política e crime: o fato social desaparece num Triângulo das Bermudas da civilidade. Não mais Estado paralelo, mas "infiltração do Estado formal pelo crime", como sustenta o jurista Abel Gomes (em "Crime Organizado e suas Conexões com o Poder Público"). Milicianiza-se a existência, basta curto percurso de táxi para ouvir uma história de vida abusiva.

Na rotina de um motorista, morador do Complexo do Lins, o dia começa com a dificuldade de tirar o seu táxi da rua, bloqueada por barras de ferro. Paga a garotos para retirar e recolocar a barreira. Ao tráfico, paga taxa semanal, "gatonet" e ambígua garantia de segurança. Ainda assim, avalia estar melhor do que no Complexo de Israel, distante a quilômetros de sua casa, onde traficantes pentecostais tocam o terror com o "bonde de Jesus". Maior preocupação é o filho, estudante em Seropédica, onde milicianos cobram taxa para festas no espaço universitário ou nos quintais particulares. Detalhe: o cobrador recolhe a cota da milícia e a da polícia.

Na espoliação ultrajante espelhada numa história individual transparece o cotidiano de 60% do território urbano. Atingiu-se patamar catastrófico, não dá mais para encobrir a realidade com a opção da "avestruz" carioca, que recomenda à vítima silenciar a violência sofrida, "é feio".

Evolucionismo é evocação do positivismo para sugerir a passagem do estado de cleptocracia (algo como Putin e oligarcas russos) ao de criminal country, expressão americana para a disseminação do crime no corpo social, como células cancerosas na metástase: um país de criminosos. O estado evolutivo final, o humanismo positivista segundo Comte, regrediu a uma pulsação teológica, mergulho de cabeça no atraso.

Já em sobressalto, fica-se sabendo da vexatória leniência do STF com um "capo" da contravenção carioca. Mas a apertada votação da Câmara sobre a prisão de mandante do assassinato de Marielle ratifica o status de criminal country. Falou alto o medo da "famiglia": inconcebível que 129 parlamentares sejam favoráveis à autoria da execução de uma vereadora em exercício de mandato. Novamente se quebrou, por voto metafórico, uma placa com o nome da morta. Só que desta vez a baixeza é federal.