A tese do marco temporal em discussão no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Congresso pode inviabilizar a demarcação de 114 territórios indígenas em 185 municípios brasileiros. As terras indígenas em processo avançado de homologação ocupam só 3% das áreas dessas cidades, aponta levantamento do Estadão. O marco temporal é o entendimento segundo o qual uma terra só pode ser demarcada se for comprovado que a comunidade originária estava no local na data da promulgação da Constituição – 5 de outubro de 1988.
A proporção dos territórios em vias de demarcação é bem menor do que o anunciado pelos defensores do marco temporal. Juntos, somam 9 milhões de hectares – equivalente a menos de um terço do Estado de São Paulo. Hoje, as terras indígenas já homologadas têm 119 milhões de hectares.
Ou seja, se os 114 processos de demarcação fossem concluídos, o impacto na quantidade de terra exclusiva dos povos originários não seria tão grande. Em vez dos atuais 14% de todo o território brasileiro, os indígenas passariam a ocupar 15% da área total do Brasil.
As terras indígenas homologadas são as que tiveram demarcação publicada por decreto presidencial. As delimitadas e declaradas tiveram estudos de demarcação concluídos e aguardam a conclusão dos respectivos processos. São 47 terras delimitadas, que aguardam a publicação de Portaria Declaratória do Ministério da Justiça. As declaradas são 67. Estas já obtiveram a portaria e estão prontas para terem a demarcação homologada.
IMPACTO
Apesar de o impacto de futuras homologações ser relativamente pequeno em termos de tamanho de território, a repercussão administrativa poderia ser robusta. Em dois municípios, do Maranhão e do Rio Grande do Sul, mais da metade da área seria exclusiva dos indígenas.
Das 185 cidades, as 40 que proporcionalmente mais teriam área convertida em terra indígena “perderiam”, juntas, 5,3 milhões de hectares dos seus 27 milhões de hectares. Para efeito de comparação, o Estado de São Paulo tem 24,8 milhões de hectares.
Em Fernando Falcão (MA), cidade de 10,5 mil habitantes, as terras indígenas Porquinhos dos Canela-Apãnjekra e Kanela Memortumré somariam 309 mil hectares, equivalentes a 60% dos limites municipais. Elas estão no caminho da homologação. No entanto, segundo a prefeitura, o marco temporal de 1988 já está consolidado na realidade local – embora a fundação da cidade seja de 1994 – e os indígenas não reivindicam novas áreas.
Primeiro prefeito de Fernando Falcão e atual secretário de articulação política, Adailton Cavalcante, afirmou que, caso as homologações avançassem, o conflito principal não seria contra brancos ou produtores instalados nas regiões, mas contra comunidades quilombolas que habitam o espaço. Ele reconheceu, porém, que zonas de cultivo de soja poderiam ser questionadas.
PROJETO
O STF voltou a debater ontem o marco temporal, mas o julgamento foi suspenso novamente (mais informações nesta página). A Câmara, por sua vez, aprovou projeto de lei que restringe as demarcações. A proposta seguiu para o Senado. O texto estabelece em lei a necessidade de ocupação de uma área até a promulgação da Constituição, para que ela possa ser demarcada como terra indígena. Na prática, paralisa processos em andamento e abre brecha para rediscussão sobre as já demarcadas.
“A Constituição prevê que cada cidadão pode ser proprietário de um imóvel. E nós somos proprietários, de acordo com a lei. Às vezes, com cadeia sucessória de mais de 200 anos. E hoje, através de uma declaração, de um laudo antropológico feito por alguém, a pessoa pode perder esse direito”, afirmou o deputado Arthur Maia (União Brasil-BA), relator do projeto na Câmara.
Com ou sem marco temporal, novos pedidos de demarcação e homologação de terras indígenas podem ser feitos. Mas esses processos continuarão longos. Envolvem pesquisa antropológica, fases de estudos socioeconômicos e diversas exigências. Boa parte dos processos de reconhecimento de áreas indígenas tem mais de duas décadas de tramitação.
A inconstitucionalidade do marco temporal, se assim for estabelecido pelo STF, não torna mais fácil a aceitação de um território indígena. O próprio Judiciário arbitrou em casos que haviam sido encerrados no Executivo em favor do reconhecimento do direito indígena.
INTERESSES.
Apesar de ainda não serem demarcadas, as terras indígenas delimitadas ou declaradas concentram etnias, hábitos e dinâmicas específicas de seus povos. Em vários casos, são áreas desejadas pelo mercado imobiliário e pelo agronegócio. Algumas das etnias já se renderam ao plantio de soja. Caso, por exemplo, do povo paresi, em Mato Grosso.
Nas imediações da cidade de Palmeira dos Índios, em Alagoas, estão declarados os 6,5 mil hectares dos xukuru-kariri. O território em processo de demarcação corresponde a 14,5% da área do município. As fazendas registradas no sistema de gestão fundiária do governo federal circundam a terra indígena. Contudo, dados do cadastro ambiental revelam a corrida para reivindicar pedaços da terra indígena.