Aos poucos, o Brasil vai conhecendo a figura do juiz-herói. Ele não tem um rosto definido, embora seu arquétipo seja facilmente identificável. Suas características são marcantes.
O juiz-herói é sempre movido por um propósito nobre. Combater a corrupção, defender o meio ambiente ou proteger o País contra atos antidemocráticos são algumas das missões que motivam a atuação intensa desses magistrados excepcionais. Na sociedade contemporânea, onde parece haver uma carência de indivíduos preocupados com o bem comum, o juiz-herói é apresentado como uma fantástica solução. Está convencido de que a razão para ocupar aquele cargo é erradicar, por meio de suas decisões, os males que afligem a sociedade.
No cumprimento de sua missão, o juiz-herói não se detém nos limites territoriais de sua jurisdição. As regras que limitam a competência dos juízes não são aplicáveis a ele. Afinal, a corrupção está em toda parte; a proteção do meio ambiente não pode ficar restrita a determinado bioma; a democracia é ameaçada diariamente, pelos mais diversos meios, em todo o País. Restringir o raio de atuação do juiz-herói representaria um enfraquecimento da causa da Justiça.
Comparados ao juiz-herói, os demais magistrados parecem meros burocratas que cumprem ritos e procedimentos. Não expressam a coragem e a audácia necessárias para abraçar objetivos tão arriscados. Transcender as demandas individuais, enfrentar os interesses dos poderosos e encontrar novos meios para combater os danos à sociedade são atribuições para poucos. Não se pode exigir tudo isso num concurso público.
Nas mãos do juiz-herói, a lei é uma ferramenta, entre outras, na realização da nobre missão. Sua interpretação é maleável, perfeitamente ajustada aos objetivos da atuação do magistrado. Mais do que a decisão jurisdicional alinharse ao texto da lei, o decisivo é a aplicação da lei alinhar-se ao objetivo que norteia o trabalho do juiz-herói.
Dispositivos e comandos constitucionais que restringem a atuação do magistrado são interpretados de forma restrita, reduzindo sua relevância e seu alcance. A pretexto de um bem maior, podem ser perfeitamente ignorados. Afinal, a causa que motiva o juiz-herói não deve sofrer limitações.
No ápice de sua jornada, o juiz-herói é imune a críticas. Não cabe suscitar dúvidas a respeito de um magistrado com propósitos tão virtuosos. Sua atuação deve servir de modelo, ser imitada, e não condenada. Eventuais excessos praticados são irrelevantes perante o bem maior. Também o advogado deve se curvar ao juizherói. Exigir respeito aos direitos de seu cliente pode gerar sérios prejuízos para o mesmo.
Hábil na interpretação das leis a seu favor, o juiz-herói é ainda melhor na construção de sua imagem pública. O caráter do magistrado e a bravura da empreitada ditam o enquadramento no qual é retratado. Não há como escapar: combater a corrupção, defender o meio ambiente ou proteger a democracia são causas de indiscutível interesse social.
Mas o juiz-herói não vive apenas no apogeu. É uma jornada, o que inclui a fase de declínio. Há um momento em que sua missão perde o encanto. Como todo poder exercido sem efetivo controle, há aspectos menos nobres, menos republicanos. O virtuosismo da missão é incapaz de esconder o rastro de danos que inexoravelmente são causados pelo exercício da magistratura autorreferenciado. Métodos não ortodoxos são revelados. A intenção virtuosa de suas decisões não mais esconde o atuar fora da lei. Em vez de juiz, o herói ganha ares de justiceiro.
A despeito de sua fama, que pode ocasionalmente lhe gerar dividendos políticos, o juiz-herói faz muito mal à justiça. Seu legado é de difícil reparação. Iniquidades cometidas em nome da justiça geram não apenas nulidades, mas corroem a autoridade da Justiça.
Ironicamente, o juiz-herói enfraquece a própria causa que o motivava no início. Combater a corrupção torna-se algo mais distante. Prevenir atos antidemocráticos perde a credibilidade. Aqueles que antes figuravam como algozes tornam-se vítimas das ações inescrupulosas de uma magistratura que se pretende imaculada. Ganha corpo uma descrença no Judiciário.
É preciso renovar a compreensão da função do juiz, uma das mais belas e nobres. Julgar exige autocontrole. Não é impor soluções pessoais. É preciso deixar de lado paixões e ideologias. O verdadeiro heroísmo do juiz está em sua capacidade de aplicar o direito além de suas convicções pessoais. Não aplica a sua vontade, mas a lei, aprovada no Parlamento.
No Judiciário, há milhares de juízes genuinamente heróis, anonimamente heróis. No recôndito de seus gabinetes, exercem com responsabilidade seu republicano e sacrificado sacerdócio. Longe dos holofotes, julgam milhares de processos que inundam a Justiça brasileira. Conscientes de que não têm poderes sobrehumanos, atuam nos limites da lei e de sua jurisdição. No entanto, com seu compasso firme e sereno, enfrentam, sem ilusionismos, os conflitos da sociedade sob sua responsabilidade. São os verdadeiros heróis. •