O racismo é determinante social da saúde dos brasileiros. Negras e negros estão a ele expostos nas suas diversas formas — desde a iniciativa em procurar o serviço, até o acesso a testes, diagnósticos e tratamentos, como agora, no voluntariado para a investigação da covid-19.
Em 2014, negros (pretos e pardos) representavam a maioria da população brasileira (53,6%), mas eram apenas 17,4% da parcela mais rica. No segmento ultrarrico (1% da população), 79% são brancos, de acordo com dados do IBGE. Já entre os mais pobres, os negros representavam 38,5%, enquanto o percentual de pobres brancos diminuía mais uma vez, chegando a 22,8%.
Os dados da saúde não priorizam o viés racial. Mas não há como negar que a situação de vulnerabilidade — seja no contexto de pessoas em situação de rua, em cárceres, na moradia e convivência em regiões periféricas sob condições adversas, violência doméstica e abusos diversos — tem influência direta no processo, saúde ou adoecimento dos negros.
O Ministério da Saúde reconhece a necessidade de instituir mecanismos de promoção da saúde integral da população negra e do enfrentamento ao racismo institucional no Sistema Único de Saúde (SUS). Para tanto, instituiu a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) em 13 de maio de 2009.
Após 10 anos, a política continua claudicante, com gargalos, sem avançar em razão de aspectos como estes:
1. Os indicadores oficiais com recorte racial existem, porém, são de difícil acesso com um sistema alimentado precariamente com dados por profissionais da saúde na ponta;
2. O racismo institucional, que dificulta a tomada de decisão quanto à definição de prioridades para a alocação de recursos. Também se manifesta na ausência de mecanismos de coibição das práticas racistas inadmissíveis dificultando a promoção de equidade de usuários e trabalhadores.
O conhecimento do profissional de saúde em relação à PNSIPN é mínimo e é pequena, ainda, a produção de conhecimento científico na área. O tema, com raríssimas exceções, não participa do currículo dos diferentes cursos de graduação e pós-graduação em saúde.
Consequentemente, não são fixadas metas diferenciadas nem indicadores sensíveis. Tampouco são oferecidos investimentos em capacitação ou em processos de educação permanente para os profissionais porque se segue reiterando que o problema é outro, é resíduo das desigualdades de classe, da história da escravidão, difícil e sem solução.
Profissionais negros na área afirmam que são discriminados e ameaçados por usuários brancos, que chegam a citar como forma de intimidação até a liberação do porte de armas, o que veem como facilitador “para sumir da face da Terra com essa gentinha” —referindo-se a trabalhadores negros. Informam que levam os fatos aos superiores que tratam, como era de esperar, de forma branda, negando-se a caracterizar como racismo ou mesmo assédio moral no trabalho.
Os cargos de gestão no serviço público de saúde no Distrito Federal são todos por indicação política partidária. Negros e negras, mesmo os que têm formação e experiência, são quase inexistentes nessas funções. Gestores brancos não querem se posicionar em situações que envolvam racismo, assédio moral, abusos e outros assuntos que consideram polêmicos, por conivência, indiferença ou para não comprometer a carreira.
Em tempos de covid-19 — situação inédita no Brasil e no mundo —, a falta de informações sobre a população negra pelo sistema saúde da família, porta de entrada para o SUS, promove ações que não vão ao encontro das demandas dessa população. Serviços como agendamentos via dispositivos eletrônicos e drive-thru para testagem não corroboram para alcançar o número grande de desassistidos nas regiões periféricas do país. É sabido que essas regiões são, em grande parte, habitadas por negros. Lá, pequenas casas abrigam inúmeras pessoas, comprometendo o distanciamento e o próprio isolamento social, medidas adequadas para conter o avanço da pandemia.
Aperfeiçoar a política pública para a população negra passa por vetores específicos. Entre eles, formação profissional, representantes eleitos comprometidos com a causa, respeito a religiões de matriz africana, a cultura, a igualdade de oportunidade e o direito de ocupar a cidade com segurança. Afinal, vidas negras importam.
*Enfermeira especialista em urgências e emergências