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quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Ourém se despede de Mestre Cardoso

    Amo do Boi Ouro Fino, de Ourém, José Ribamar Cardoso, o Mestre Cardoso, morreu na terça-feira,20,  no Hospital Ofir Loiola, em Belém, aos 79 anos. Por sua dedicação à preservação do boi-bumbá, tornou-se um símbolo da cultura popular paraense. “Foi um baque muito grande para a cultura daqui, Mestre Cardoso tinha uma voz potente e compunha toadas geniais”, afirmou Arlindo Matos, presidente da Fundação Cultural de Artes e Esportes Mundico e Manoela, de Ourém, uma das poucas entidades que davam apoio ao Mestre Cardoso, nos últimos anos.
    Para os integrantes do Instituto Arraial do Pavulagem, de Belém, Mestre Cardoso era uma inspiração e um exemplo. “Ele nos influenciou totalmente”, diz Allan Carvalho. “Ele era um gênio, não tocava no rádio, só tocava o tambor dele e era o maior sucesso”. Ronaldo Silva, fundador do Arraial do Pavulagem, criticou o “abandono” e a “solidão” em que ele morreu. “Ele passava por dificuldades, certa solidão. Era um mestre genial da cultura popular e morreu desprezado, abandonado, apesar de ser muito querido”. Silva afirmou que o Arraial do Pavulagem vai dar continuidade à obra dele.
    Mestre Cardoso nasceu em Parnaíba, Piauí, em 4 de janeiro de 1933, filho de João Cândido Cardoso e Maria Francisca Cardoso. Aos dez anos, começou a brincar em bois tradicionais da região e, aos 14, montou o boi Dominante. Aos 20 anos, veio de Parnaíba para a Amazônia, onde morou em Carutapera (MA) e Viseu, Bragança e Capitão Poço (PA). No mesmo ano em que chegou a Ourém, em 1993, fundou o boi Ouro Fino. Foram quase seis décadas colocando o boi para brincar.
    Em 2005, Mestre Cardoso gravou seu primeiro disco “Galo de campina” e, em 2006, o “Bois de Ourém, vol. 1”. Boa parte das gravações dele, inclusive os discos, foi feita pelo produtor cultural Fábio Gonçalves Cavalcante, dono da FGC Produções, hoje radicado em Santarém. As gravações eram feitas para o programa “Sala de Reboco”, que Cavalcante apresentou na rádio Tembés FM, de Ourém, entre 2003 e 2006. Foram 13 especiais com o mestre com dezenas de toadas gravadas sobre os mais diversos temas, incluindo o celular, o descobrimento do Brasil, a floresta, o furacão Katrina e até a prisão de Saddam Hussein, entre outras.
    Mestre Cardoso, que ia completar 80 anos no próximo dia 4 de janeiro e nunca tinha ido ao médico, sentiu-se mal há um mês e foi diagnosticado com câncer do fígado. Ele vai ser enterrado no cemitério de São Marcelo de Ourém, às 17h de quarta-feira. Segundo Arlindo Matos, a prefeitura só deu uma ajuda no traslado do corpo de Belém para Ourém. O velório deve ser realizado na casa simples onde o mestre vivia e não estão previstas homenagens oficiais.
NATUREZA
    Após caminhar anônimo entre a multidão que assistia na Praça da República ao show da banda Arraial do Pavulagem, José Ribamar Cardoso subiu ao palco a convite do grupo. Apresentado como Mestre Cardoso, tomava o palco uma figura serena realçada pelo brilho dos enfeites dourados do chapéu, que refletiam o forte sol junino de 2007. Bastou sua potente voz tocar o microfone, avisando que viu a “Estrela Dalva brilhar na primavera”, e minutos depois aquele senhor até então desconhecido seria ovacionado por cerca de 30 mil pessoas.
    Cinco anos mais tarde, na própria sala de casa onde costumava reunir os amigos, Mestre Cardoso se despediu. Enquanto a cidade de Ourém se despedia de um ilustre morador, o Pará dava adeus a um nordestino que adotou e defendeu a identidade do estado. E o Brasil perdia mais um mestre de cultura popular que partiu de forma não tão digna quanto merecia. De lá, o corpo do Mestre Cardoso seguiu para o cemitério São Marcelo.
    Como um verdadeiro bardo, foi por meio da tradição oral que Cardoso gravou seu nome na cultura popular e registrou sua história, a despeito dos documentos oficiais. Até hoje os moradores próximos à residência do Mestre, no bairro do Porão, atribuem poderes divinos à sua voz, como relata o amigo Arlindo Matos, produtor cultural que acompanhou boa parte da trajetória do Mestre Cardoso.
    A relação do Mestre Cardoso com a natureza, principalmente com os animais, ganha tons místicos na voz dos amigos. Tido na comunidade como um curandeiro, faceta pouco conhecida pelo público de sua música, Cardoso preferia se denominar “veterinário do mato”. “Ele fazia poções, usava ervas da floresta para fazer remédios para pessoas e animais” conta Arlindo. “Ele trabalhava no solo e se aposentou como lavrador, tinha essa relação com a natureza. Montava o cavalo como ninguém, parecia um moleque. Parecia que se entendia com os bichos”.
    Conhecido e respeitado na comunidade, a Cardoso chegaria aos ouvidos do grande público também por meio de sua voz. Quando pesquisou os mestres de boi-bumbá em Ourém, o músico Fábio Cavalcante destacou quatro compositores nos álbuns “Bois de Ourém” volumes 1 e 2, mas Cardoso chamou sua atenção desde o início: “O Cardoso era muito descolado, bem mais que os demais. Acostumado a puxar as músicas na rua, um showman mesmo”, conta Fábio.
LUCIDEZ
    Além de não ter a timidez dos demais mestres, Cardoso se destacou pela lucidez que tinha como marca registrada, lucidez capaz de poetizar em seus versos as crises no Oriente Médio, as descobertas científicas e até as situações mais corriqueiras em seus versos, como na canção ‘Não sou Norte Americano’: “Eu cantei essa toada aqui para o pessoal, porque eu tenho memória e tenho meu ideal, compositei em toada conforme passa o jornal”.
    A poesia do Mestre Cardoso revela, além da tradição nordestina de compor toadas de boi influenciadas pelo improviso dos repentes, a visão de mundo de um homem que sempre cultivou hábitos simples. Nunca bebeu, nunca fumou, nunca tomou refrigerante e sempre valorizou o contato com o público. Contato que seria ampliado exponencialmente quando suas composições passaram a fazer parte do repertório dos arrastões do Arraial do Pavulagem.
    “Essa aproximação começou com a ação da Fundação Curro Velho de revitalizar os bois de Ourém, e essas composições ligadas a questões universais são resultado dessa ação” relembra o compositor Ronaldo Silva, do Arraial do Pavulagem: “em Ourém, acabamos descobrindo a importância da dedicação desses mestres para o fortalecimento da cultura popular de Ourém, principalmente por causa da capacidade criativa dele [Mestre Cardoso] como compositor.”
    Ronaldo conta ainda que Cardoso tinha a intenção de ajudar a formatar um boi-bumbá em Cachoeira do Arari em junho de 2013. “É mais um personagem histórico que se despede distante da dignidade que queremos para esses colaboradores da música brasileira, e mesmo com essas dificuldades ele não conseguia deixar de ser uma figura a favor da alegria”. Ronaldo visitou o Mestre Cardoso no hospital, poucos dias antes de sua partida. “Eu disse que ele tivesse o pensamento voltado pra Deus e que aproveitasse aquele momento em que estava próximo do filho”.
    Valdemir Lima, filho do Mestre Cardoso, acompanhou o pai em seus últimos dias de internação e contou que a família foi surpreendida pela doença: “Foi tudo muito rápido, mas por outro lado ele não chegou a sofrer”. O Mestre Cardoso completaria 80 anos no próximo dia 4 de janeiro, e mesmo debilitado por um câncer descoberto há cerca de um mês, conservou a lucidez até os últimos momentos de vida.
    “Seu último pedido foi reunir a família, e nesse momento eu tratei de avisar a todos”, conta Valdemir, sobre o pedido feito ao filho ao meio dia de terça-feira (20). No dia seguinte Cardoso reuniria a família na sala de sua casa, mas já não estaria presente como gostaria. Uma ausência lamentada por todos aqueles que já foram de alguma forma curados pela voz mágica do Mestre Cardoso.
(Alexandre Yuri Nascimento/Diário do Pará)