Recebi da minha filha uma dica preciosa: “Você precisa ouvir o podcast ‘Real dictators’”. Como pai obediente, fui lá escutar e descobri uma pérola de pesquisa histórica apresentada por Paul McGann, ator e diretor inglês, narrando a vida de alguns dos mais sanguinários ditadores da História. Hitler, Stálin, Mao, Kadafi, Idi Amin, Papa Doc, Kim Jong-il e o generalíssimo Franco. O objetivo do podcast é tentar explicar como um único homem consegue convencer milhares a matar em seu nome enquanto outros milhões se fazem de desavisados.
Além da tragédia humana e das atrocidades, algumas bizarrices: Kim Jong-il sequestrando a principal estrela de cinema sul-coreana e seu marido diretor para dirigir, durante anos, filmes para ele. Um deles, de tão ruim, virou cult no Ocidente: “Pulgasari”. O vaidoso Muamar Kadafi mandou retirar os nomes dos jogadores de futebol das camisas para não se tornarem famosos: “Oito passa para seis, que cruza para dez e... gol de dez!”. Pelo mesmo motivo, despediu todos os apresentadores dos noticiários de TV e recrutava aleatoriamente pessoas na rua para ler as notícias do dia.
Todos os episódios são surpreendentes, mas sugiro começar com Franco e Mao Tsé-Tung. Entender esses dois ditadores, em campos ideológicos opostos, serve como preparo para o melhor livro que li em 2021: “Olhar para trás”, obra-prima do escritor colombiano Juan Gabriel Vásquez.
A história real de uma família de republicanos obrigada a fugir da Espanha após a vitória das forças nacionalistas na Guerra Civil Espanhola, ganha apenas após uma ajuda forte do irmão de alma de Franco, Hitler. Depois de um trajeto tortuoso, chega à Colômbia, onde o pai, Fausto Cabrera, se torna um famoso ator e diretor de teatro e televisão. Seus filhos, Sergio e Marianella, crescem na Colômbia até seus pais se transformarem em maoistas convictos, a ponto de se mudarem todos para a China para dar aulas de espanhol a membros do Partido Comunista e até chegarem, anos depois, como guerrilheiros, à selva colombiana.
O livro conta, na primeira pessoa do filho Sergio, hoje diretor de cinema colombiano, a saga dessa família contaminada pela história e por seus conflitos. Ao escrever, depois de anos de convívio com a família Cabrera, Juan Gabriel mantém uma distância contida, nunca cometendo o deslize de emitir qualquer juízo de valor; nem nos sugere escolher lados ou condenar as opções de qualquer um dos personagens.
Vamos lendo como a dedicação total da família Cabrera a uma causa provoca feridas que nunca cicatrizam. Sergio e Marianella, com outros milhões de jovens chineses, se tornam guardas vermelhos da Revolução Cultural em 1969, incitada por Mao para recuperar o poder político dentro do Partido Comunista chinês, onde o Grande Timoneiro começava a ser questionado. Eles ajudaram, embalados por seus colegas chineses, a perseguir professores, intelectuais, líderes do partido ou quem cometesse o pecado de ser mais velho que a Revolução de 1949. Assembleias populares pipocavam nas ruas sugerindo novas regras que refletissem o espírito da revolução. Numa delas, conta Sergio no livro, surgiu a ideia de trocar o significado do vermelho e verde nos faróis e sinais de trânsito. O vermelho, como cor da revolução, não poderia ser o sinal de parar, e sim de avançar.
Da China, os irmãos vão parar na selva colombiana para se juntar às Farc. É fascinante acompanhar os dois irmãos maoistas latinos pelos caminhos da floresta, onde o pragmatismo dos campesinos vai embaralhando a linha que separa o certo do errado. Cheios de certezas e armados de ideologia e Kalashnikovs, eles aos poucos são obrigados a aprender a duvidar e a reencontrar sua humanidade.
Ouvindo o podcast, fica claro quanto os ditadores dependem de um dogma rígido para justificar a opressão política e o terror contra os inimigos da “ordem” estabelecida por eles. O grande mérito de “Olhar para trás” é nunca deixar claro o que é o mal e onde está o bem, provando que, quando a doutrina bate de frente com a natureza humana e a ambiguidade das nossas emoções, ela se desmancha.