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domingo, 21 de março de 2021

Camus - A ciência na distopia do escritor francês

 

Camus foi visionário ao escrever sobre uma estreita relação da epidemia no livro com as mudanças climáticas e as ações do homem sobre elas

Sérgio Augusto
Para não perder a sintonia com o momento presente, fui reler A Peste, de Albert Camus. A Peste e 1984 são as duas criações literárias mais afinadas com o nosso tempo, best-sellers cíclicos, se não permanentes, de um mundo continuamente atormentado por flagelos biológicos e prepotência política. Com o negacionismo e o autoritarismo de Trump e Bolsonaro, conseguimos conjuminar as duas desgraças. Este século não é para maricas. Nossos “Roaring Twenties” nos prometem muito mais rugidos que os de 100 anos atrás.

Reli o romance de Camus com um ano de atraso em relação a um grupo de 35 médicos que em abril do ano passado fizeram o mesmo enquanto se esfalfavam na linha de frente de combate ao covid em hospitais de Nova York. Soube disso pela escritora e tradutora Laura Marris, que com eles conversou a respeito da experiência de se acompanhar o enfrentamento ficcional a uma epidemia de peste bubônica no Norte da África, 80 anos atrás, em meio a uma pandemia de coronavírus real, presente e, ao contrário da outra, sem vislumbre de fim. No mínimo única, ela, a experiência, foi.

De minha parte, escrevo estas mal digitadas com quase 300 mil mortos no mortefólio do Capitão Coronga e em meio a uma nova e patética troca de comando em nossa Saúde. Afastado pelo Planalto, rejeitado pelo Exército, execrado pela população e, por boas razões, temeroso dos tribunais, Pazuzu saiu como uma alma penada, para que em seu lugar entrasse um paumandado de jaleco cujo nome é uma piada pronta.

O doutor feito ministro já estreou cometendo uma gafe, imperdoável para quem irá comandar a guerra contra o coronavírus. Ajustou sua máscara de forma inadequada ao ser apresentado pela TV aos que ainda estão vivos no Boçalnistão.

Quem narra A Peste e lidera o combate ao bacilo que devasta a população da “febril e sitiada” Oran (Argélia) é um médico de outra cepa. Dr. Bernard Rieux é o primeiro da cidade a pronunciar a palavra peste e o último a deixar o campo de batalha, depois de vencido o invasor patogênico. Camus não o glorifica como um super-homem. Os heróis de Oran são os voluntários – Jean Tarrou, padre Paneloux, o jornalista Raymond Rambert – que ajudam Rieux a montar uma resistência à epidemia tão sólida e destemida quanto a que, naquele exato momento (1941, mais ou menos), enfrentava invasores nazistas na França.

A Camus tampouco agrada criar vilões explícitos e explorar contrastes maniqueístas. Paneloux, que a princípio vê a peste como uma provação de origem divina, troca seus sermões por uma adesão efetiva ao voluntariado que cuida das vítimas da peste, arriscando a própria vida. O egocêntrico Rambert, que só pensava em fugir da cidade, com a cumplicidade de um contrabandista, para encontrar a namorada, afinal se resigna a permanecer na luta coletiva, deixando Cottard, o contrabandista, como o único personagem claramente negativo do romance.

Cottard só pensa em si mesmo e em lucrar com a miséria alheia. A derrota do bacilo será também sua derrota.

Verdade que o prefeito da cidade e seus burocratas minimizam a catástrofe, mas não são protagonistas nem tão nefastos em sua inação quanto Trump e Bolsonaro, ativíssimos no boicote às medidas de enfrentamento à pandemia, genuínos quintas-colunas do covid-19.

Rieux é a voz da razão, da ciência. “Trabalhamos juntos por algo que nos une acima de orações e blasfêmias, e é isso que conta”, diz ele, desautorizando as explicações religiosas, sobrenaturais e espiritualistas para os trágicos acontecimentos da vida. Mais do que uma alegoria da luta contra o nazismo, do confronto do racional com a superstição e a desinformação, da superação de intransigências ideológicas autoritárias, A Peste é um manifesto antifatalista, em favor da intervenção humana e de um ideal democrático baseado na compaixão, na solidariedade.

Há um aspecto curioso em A Peste, que o aproxima ainda mais de nossas preocupações atuais: a estreita relação da pandemia com as mudanças climáticas e as ações do homem sobre elas. Rieux refere-se ao tempo (clima) em quase todas as partes do romance, vive a olhar para o céu, a descrever nuvens e a interpretar o que está por vir através das formas que elas adquirem encharcadas pela implacável e insalubre umidade da primavera saariana.

O céu é um personagem fundamental do romance. Rieux segue suas mudanças como se fosse um marujo orientando-se pelas estrelas e pela direção dos ventos. Assim procediam os cronistas de pestilências passadas, como a epidemia de cólera que devastou Oran em 1849, já naquela época cismados de que certos ventos e miasmas eram vetores de moléstias agressivamente contagiosas e letais.

Para entender melhor os caprichos do tempo, os recados do céu e os malefícios da umidade, Camus passou quase um ano, entre 1937 e 1938, metido num jaleco branco, a catalogar e estudar medidas de pressão atmosférica registradas por centenas de estações meteorológicas do Norte da África, na metade do século 19. Chegou a ter em mãos 27 anos de pressões barométricas de 121 estações, dados que complementou com a leitura de um livro de 1897, A Defesa da Europa Contra a Peste, reputado estudo da influência do clima sobre diferentes cidades europeias, escrito pelo epidemiologista Adrien Proust.

Quem leu Em Busca do Tempo Perdido sabe o quanto o velho Adrien foi também importante para a obra de seu filho, Marcel.