O artigo 23, inciso II, da Constituição federal determina a competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios para “cuidar da saúde e assistência pública”. O editorial A Federação em funcionamento, deste jornal (20/4/20, A3), explicou a importância da competência concorrente e da descentralização decisória asseguradas na Carta Magna para o enfrentamento da pandemia: “O conhecimento das circunstâncias locais, tais como o número de pessoas infectadas, o tamanho da equipe médica e a disponibilidade de leitos de UTI e de equipamentos médicos, é decisivo para a correta dosagem das medidas de isolamento social e de restrição da atividade econômica. Uma medida única para todo o País seria um completo desastre, além de ineficiente em termos de saúde pública”.
Se uma única providência para o País seria prejudicial, analogamente, o mesmo acontece com a aplicação de medidas homogêneas para todo um Estado. Na Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 6341, o Supremo Tribunal Federal reforçou a competência normativa de municípios, entes autônomos da Federação que detêm informações locais para estabelecer políticas públicas contra o vírus.
Mas a análise da situação local sociodemográfica e epidemiológica tem sido sumariamente desconsiderada desde o início da pandemia por decretos estaduais que impuseram o fechamento do comércio e de serviços reputados “não essenciais”.
No Estado de São Paulo, decretos do governador atingem os 645 municípios paulistas, com condições epidemiológicas absolutamente distintas uns dos outros: no início da pandemia, grande parte dos municípios foi obrigada a “fechar” por meses, quando nem sequer existiam evidências de circulação do coronavírus, sem mortes a ele associadas e havendo significativa disponibilidade de leitos e infraestrutura médica subutilizada. Casos notórios foram os de São José dos Campos e Piracicaba, obrigados a permanecer fechados com apenas 10% dos leitos hospitalares ocupados – e 90% de ociosidade, sendo compelidos, portanto, a queimar cartuchos antes da guerra.
Agora a história se repete. Cientes do quadro de saúde pública e das necessidades de sua população, prefeitos editaram decretos visando à flexibilização da quarentena “tamanho único” (one size fits all) recentemente imposta mais uma vez pelo governo estadual.
O Ministério Público vem se contrapondo a políticas públicas municipais durante a pandemia e ajuizando ações judiciais contra prefeituras, com base na preponderância hierárquica da competência estadual, a fim de obrigá-las a seguirem as normas de quarentena do Estado, causando graves danos à sobrevivência da população municipal impedida de trabalhar. Juízes e desembargadores, infelizmente, têm acolhido os pedidos dessas ações, aniquilando a competência legal de prefeitos legitimamente eleitos e legalmente autorizados a decidir sobre o futuro de seus munícipes.
Ora, o artigo 3.º, § 1.º, da Lei 13.979/2020 determina que as medidas para o combate do vírus “deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública”. Municípios que não apresentavam condições epidemiológicas que justificassem a quarentena foram compelidos a “fechar”, contrariando o pré-requisito da lei de que as autoridades deverão adotar medidas com base em “evidências científicas”.
A análise técnica e a decisão política devem ocorrer localmente. Não se deve impor ônus socioeconômico desproporcional à população local por ordem centralizadora do governo estadual. Pelo artigo 3.º, § 7.º, II, daquela lei, os gestores locais de saúde podem adotar qualquer medida regulatória desde que autorizados pelo Ministério da Saúde, incluída a quarentena – prevista no inciso II do artigo 3.º. Portanto, forçoso é concluir que, se podem adotá-la, também podem flexibilizá-la. A Portaria n.° 356, de 11/3/2020, do Ministério da Saúde, no artigo 4.º, § 1.º, dispõe que “a medida de quarentena será determinada mediante ato administrativo formal e devidamente motivado e deverá ser editada por Secretário de Saúde do Estado, do Município, do Distrito Federal ou Ministro de Estado da Saúde (...)”.
Uma vez que a Lei 13.979 e a Portaria 356 autorizam secretários de Saúde municipais a adotar política de saúde pública segundo estudos técnicos locais, é equivocada a interpretação generalizada de que o decreto estadual deve preponderar sobre os decretos municipais. Tal interpretação afronta a descentralização federativa, garantida na Carta Magna, bem como o artigo 5.º ,incisos XIII e XV, que asseguram a liberdade de trabalho e locomoção.