Pela manhã, seu nome era Alcides de Aguiar Caminha,
datiloscopista da Divisão de Imigração do Ministério do Trabalho. À noite era
Carlos Zéfiro, pornógrafo que fez fama desenhando quadrinhos de sexo batizados
como “catecismos” (por conta da semelhança com os livrinhos usados nas
igrejas).
Essa transformação está descrita em O Deus Da Sacanagem, biografia
escrita pelo jornalista Gonçalo Júnior. O livro lançado pela editora Noir
traça uma trajetória que começa nos anos 1920, quando o pai de Alcides foi para
o Rio de Janeiro como funcionário da Farmácia Granado.
E foi na Cidade Maravilhosa, que nasceu, em 25 de setembro de
1921, o homem que tangenciou a fama das mais diversas formas. Por volta dos 12
anos, tentou ser jogador de futebol. Alimentou esperanças quando entrou para a
equipe mirim do São Cristovão de Futebol e Regatas (como goleiro), mas acabou
dispensado junto com toda a equipe depois de uma campanha fracassada. Depois
tentou carreira na música, se inscrevia em concursos de marchinhas, imitava
Orlando Silva como poucos e tornou-se parceiro de Nelson Cavaquinho e Guilherme
de Brito no clássico inabalável A Flor e o Espinho.
Mas o autor dos versos “tire seu sorriso do caminho que eu quero passar
com a minha dor” é também o autor dos quadrinhos Sonhos Eróticos e
Despedida de Uma Solteira. “É uma figura que extrapolou tudo que se
poderia imaginar sobre quadrinhos pornográficos. Um maldito, perseguido, nunca
preso, mas uma personalidade fundamental para a formação da sexualidade do
brasileiro”, defende Gonçalo que começou a pesquisa a partir de uma conversa
com Lillian Schwartz. “Ela estava organizando uma exposição no Masp (Histórias
da sexualidade) sobre sexualidade nas artes plásticas, quadrinhos. Ela dedicou
uma parte importante ao Zéfiro, como um desbravador”.
E ser um desbravador é o que dá a Zéfiro sua importância histórica. Ele
não foi o primeiro a produzir historinhas de sacanagem, nem se sabe o quanto
ele vendeu. Mas é certo que o funcionário público, que era um pai conservador,
foi o primeiro a criar um alter ego de nome factível e, com ele, assinou uma
produção em série. “Antes dele, os catecismos nem tinham autor ou, então, eram
nomes fictícios, brincadeiras como Martha T. Chupa, K-Cete ou Paul Nuku. 98%
nem eram assinadas. Como ele começou a assinar como uma pessoa de verdade, ele
fica popular e outras pessoas passam a assinar também. O nome ‘Carlos Zéfiro’
virou uma grife”, explica.
E foi como Carlos Zéfiro que Alcides desafiou uma época de caretice
ferrenha. Quando falar em orgasmo feminino era macular a imagem sagrada da mãe,
ele criou uma infinidade de personagens femininas que eram donas e
protagonistas da própria sexualidade. “Não diria que ele é um feminista. Não há
debate sobre o feminismo nas histórias dele. Acho que ele era libertário. Há a
liberdade para elas viverem sua sexualidade. Ele deve ter mudado a cabeça de
muita gente, ele deve ter feito muita gente ver a mulher na hora do sexo”,
comenta o autor que vê no pornógrafo um caráter até pedagógico ao dar dicas de
como se aproximar de uma mulher. “As oito primeiras páginas eram sobre
aproximação, convencimento, abordagem. Como o Alcides era um Don Juan, um
comedor, ele dizia que a mulher buscava sim prazer na cama”.
E essas aulas eram feitas através de um quadrinho tosco, pobre em
detalhes e que, mesmo tendo sido exercitado por décadas, não evoluiu em nada
com o tempo. Alcides chegou a estudar desenho e deu uma de arquiteto quando
projetava a casa de vizinhos no bairro de Anchieta. Zéfiro nasce quando um motorista
de ambulância soube do seu traço e pediu que lhe fizesse alguns desenhos de
mulher pelada. Felizes com o resultado, chamaram um vendedor de livros para
ajudar na distribuição do material. Nasceu ali um negócio que foi bem lucrativo
até a década de 1980. Lucrativo para quem produzia e distribuía, mas muito
pouco para o autor das histórias.
Para
Gonçalo, a história de Carlos Zéfiro teria duas ou três partes. A primeira é
quando ele precisa fazer desenhos eróticos para construir uma casa para a
família. A segunda, já com emprego fixo e com um cargo de chefia, é quando usa
seu alter ego para dar vazão a um lado libertino de quem, desde criança, tinha
atração por imagens eróticas, corpos curvilíneos e bocas carnudas.
Cobrado
por histórias cada vez mais escandalosas, ele trazia para os catecismos
zoofilia, sexo grupal, pedofilia e abusos sexuais, esses dois últimos com um
olhar crítico. Entre suas histórias mais famosas estavam A Pagadora de
Promessa, que teria vendido mais de 30 mil cópias, e “As aventuras de João
Cavalo”, republicado inúmeras vezes e que teria ultrapassado 1 milhão de
exemplares.
Mesmo
tendo sido um dos homens mais procurados do Brasil, Zéfiro cruzou os anos 1960
e 70 sem ser descoberto. Sua verdadeira identidade só foi revelada no início dos
anos 1990, numa reportagem da revista Playboy. Uma década antes, o interesse
por seus desenhos já havia sido substituído por milhares de filmes e revistas
bem mais acessíveis. Uma vez revelada a identidade, Zéfiro entra na terceira e
última fase de sua vida. Vive tempos de glória, reconhecimento, dá entrevistas
em todos os veículos de comunicação, ganha prêmios e participa da Bienal
Internacional dos Quadrinhos, ao lado do quadrinista novaiorquino Will Eisner e
do editor italiano Sérgio Bonelli, responsável pelo personagem Tex.
Alcides
e Zéfiro aproveitaram a fama tardia até o último momento. O primeiro faleceu na
noite de 5 de julho de 1992, voltando do aniversário de um neto. Dois dias
antes, havia dado uma entrevista para o Jornal O Globo dizendo que voltaria a
publicar suas histórias em breve, já que estava recuperado de uma trombose que
sofreu um mês antes e das dificuldades de visão. Ele até teria 50 novos
quadrinhos a apresentar. “O que impressiona é o quanto ele era ousado, ele era
subversivo. O código penal considerava o que ele fazia como pornografia, que
era crime. Ele conseguiu chegar, mesmo correndo risco, onde talvez só Marques
de Sade chegou”, compara Gonçalo Júnior.
Quatro
anos depois da morte de Zéfiro, Marisa Monte virou uma das musas do desenhista
quando lhe prestou uma homenagem na capa do disco Barulhinho Bom. Esse foi um
dos tributos póstumos que o pornógrafo recebeu. Alguns livros também tentaram
dar a real dimensão histórica de sua obra, assim como surgiram autores
assumidamente influenciados pelo seu traço. No entanto, em tempos de internet,
quando acompanhantes reais e virtuais estão à distância de um aplicativo, é
difícil imaginar alguém que ainda se esconda num banheiro com um catecismo mal
desenhado. Mas Gonçalo defende a importância do seu biografado. “A gente está
vivendo um momento em que a presença de Zéfiro acaba ganhando importância, que
é um momento de retrocesso moral e político. Nunca se matou tantos gays e
mulheres quanto agora. E esse é um livro que tenta fazer um mapa da sexualidade
do Brasil nos últimos 100 anos”. E projeta: “Espero que Zéfiro sirva com uma
reflexão sobre esse retrocesso, que a obra dele seja vista como leitura de uma
época.
Espero
que ele seja discutido. A história da sexualidade precisa ser discutida”.
O Deus
da sacanagem
De
Gonçalo Junior
Ed.
Noir
384
pág.
Quanto: R.9