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domingo, 2 de dezembro de 2018

Um tarado em família - Biografia de Carlos Zéfiro, o autor dos 'catecismo'

   
Quem viu na TV a imagem daquele senhor sentado diante de Jô Soares não teria como supor que ali estava um dos homens mais procurados pela ditadura militar. Falando baixo e sempre com frases curtinhas, meio tímido, era difícil imaginar que ele foi capaz de criar um mundo de obscenidades capazes de deixar Alexandre Frota ou Kid Bengala ruborizados. Casado por mais de 50 anos com Montserrat Santos, católica inquestionável, ele desafiou a igreja expondo vergonhas que eram jogadas pra baixo das batinas. Sem dar um tiro, ele fez uma revolução sem precedentes a partir de um quartinho de 4m² construído nos fundos da casa onde morava com a família.
    Pela manhã, seu nome era Alcides de Aguiar Caminha, datiloscopista da Divisão de Imigração do Ministério do Trabalho. À noite era Carlos Zéfiro, pornógrafo que fez fama desenhando quadrinhos de sexo batizados como “catecismos” (por conta da semelhança com os livrinhos usados nas igrejas).
    Essa transformação está descrita em O Deus Da Sacanagem, biografia escrita  pelo jornalista Gonçalo Júnior. O livro lançado pela editora Noir traça uma trajetória que começa nos anos 1920, quando o pai de Alcides foi para o Rio de Janeiro como funcionário da Farmácia Granado.
     E foi na Cidade Maravilhosa, que nasceu, em 25 de setembro de 1921, o homem que tangenciou a fama das mais diversas formas. Por volta dos 12 anos, tentou ser jogador de futebol. Alimentou esperanças quando entrou para a equipe mirim do São Cristovão de Futebol e Regatas (como goleiro), mas acabou dispensado junto com toda a equipe depois de uma campanha fracassada. Depois tentou carreira na música, se inscrevia em concursos de marchinhas, imitava Orlando Silva como poucos e tornou-se parceiro de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito no clássico inabalável A Flor e o Espinho.
    Mas o autor dos versos “tire seu sorriso do caminho que eu quero passar com a minha dor” é também o autor dos quadrinhos Sonhos Eróticos e Despedida de Uma Solteira. “É uma figura que extrapolou tudo que se poderia imaginar sobre quadrinhos pornográficos. Um maldito, perseguido, nunca preso, mas uma personalidade fundamental para a formação da sexualidade do brasileiro”, defende Gonçalo que começou a pesquisa a partir de uma conversa com Lillian Schwartz. “Ela estava organizando uma exposição no Masp (Histórias da sexualidade) sobre sexualidade nas artes plásticas, quadrinhos. Ela dedicou uma parte importante ao Zéfiro, como um desbravador”.
    E ser um desbravador é o que dá a Zéfiro sua importância histórica. Ele não foi o primeiro a produzir historinhas de sacanagem, nem se sabe o quanto ele vendeu. Mas é certo que o funcionário público, que era um pai conservador, foi o primeiro a criar um alter ego de nome factível e, com ele, assinou uma produção em série. “Antes dele, os catecismos nem tinham autor ou, então, eram nomes fictícios, brincadeiras como Martha T. Chupa, K-Cete ou Paul Nuku. 98% nem eram assinadas. Como ele começou a assinar como uma pessoa de verdade, ele fica popular e outras pessoas passam a assinar também. O nome ‘Carlos Zéfiro’ virou uma grife”, explica.
    E foi como Carlos Zéfiro que Alcides desafiou uma época de caretice ferrenha. Quando falar em orgasmo feminino era macular a imagem sagrada da mãe, ele criou uma infinidade de personagens femininas que eram donas e protagonistas da própria sexualidade. “Não diria que ele é um feminista. Não há debate sobre o feminismo nas histórias dele. Acho que ele era libertário. Há a liberdade para elas viverem sua sexualidade. Ele deve ter mudado a cabeça de muita gente, ele deve ter feito muita gente ver a mulher na hora do sexo”, comenta o autor que vê no pornógrafo um caráter até pedagógico ao dar dicas de como se aproximar de uma mulher. “As oito primeiras páginas eram sobre aproximação, convencimento, abordagem. Como o Alcides era um Don Juan, um comedor, ele dizia que a mulher buscava sim prazer na cama”.
    E essas aulas eram feitas através de um quadrinho tosco, pobre em detalhes e que, mesmo tendo sido exercitado por décadas, não evoluiu em nada com o tempo. Alcides chegou a estudar desenho e deu uma de arquiteto quando projetava a casa de vizinhos no bairro de Anchieta. Zéfiro nasce quando um motorista de ambulância soube do seu traço e pediu que lhe fizesse alguns desenhos de mulher pelada. Felizes com o resultado, chamaram um vendedor de livros para ajudar na distribuição do material. Nasceu ali um negócio que foi bem lucrativo até a década de 1980. Lucrativo para quem produzia e distribuía, mas muito pouco para o autor das histórias.
Para Gonçalo, a história de Carlos Zéfiro teria duas ou três partes. A primeira é quando ele precisa fazer desenhos eróticos para construir uma casa para a família. A segunda, já com emprego fixo e com um cargo de chefia, é quando usa seu alter ego para dar vazão a um lado libertino de quem, desde criança, tinha atração por imagens eróticas, corpos curvilíneos e bocas carnudas. 
Cobrado por histórias cada vez mais escandalosas, ele trazia para os catecismos zoofilia, sexo grupal, pedofilia e abusos sexuais, esses dois últimos com um olhar crítico. Entre suas histórias mais famosas estavam A Pagadora de Promessa, que teria vendido mais de 30 mil cópias, e “As aventuras de João Cavalo”, republicado inúmeras vezes e que teria ultrapassado 1 milhão de exemplares.
Mesmo tendo sido um dos homens mais procurados do Brasil, Zéfiro cruzou os anos 1960 e 70 sem ser descoberto. Sua verdadeira identidade só foi revelada no início dos anos 1990, numa reportagem da revista Playboy. Uma década antes, o interesse por seus desenhos já havia sido substituído por milhares de filmes e revistas bem mais acessíveis. Uma vez revelada a identidade, Zéfiro entra na terceira e última fase de sua vida. Vive tempos de glória, reconhecimento, dá entrevistas em todos os veículos de comunicação, ganha prêmios e participa da Bienal Internacional dos Quadrinhos, ao lado do quadrinista novaiorquino Will Eisner e do editor italiano Sérgio Bonelli, responsável pelo personagem Tex.
Alcides e Zéfiro aproveitaram a fama tardia até o último momento. O primeiro faleceu na noite de 5 de julho de 1992, voltando do aniversário de um neto. Dois dias antes, havia dado uma entrevista para o Jornal O Globo dizendo que voltaria a publicar suas histórias em breve, já que estava recuperado de uma trombose que sofreu um mês antes e das dificuldades de visão. Ele até teria 50 novos quadrinhos a apresentar. “O que impressiona é o quanto ele era ousado, ele era subversivo. O código penal considerava o que ele fazia como pornografia, que era crime. Ele conseguiu chegar, mesmo correndo risco, onde talvez só Marques de Sade chegou”, compara Gonçalo Júnior.
Quatro anos depois da morte de Zéfiro, Marisa Monte virou uma das musas do desenhista quando lhe prestou uma homenagem na capa do disco Barulhinho Bom. Esse foi um dos tributos póstumos que o pornógrafo recebeu. Alguns livros também tentaram dar a real dimensão histórica de sua obra, assim como surgiram autores assumidamente influenciados pelo seu traço. No entanto, em tempos de internet, quando acompanhantes reais e virtuais estão à distância de um aplicativo, é difícil imaginar alguém que ainda se esconda num banheiro com um catecismo mal desenhado. Mas Gonçalo defende a importância do seu biografado. “A gente está vivendo um momento em que a presença de Zéfiro acaba ganhando importância, que é um momento de retrocesso moral e político. Nunca se matou tantos gays e mulheres quanto agora. E esse é um livro que tenta fazer um mapa da sexualidade do Brasil nos últimos 100 anos”. E projeta: “Espero que Zéfiro sirva com uma reflexão sobre esse retrocesso, que a obra dele seja vista como leitura de uma época. 
Espero que ele seja discutido. A história da sexualidade precisa ser discutida”.
O Deus da sacanagem
De Gonçalo Junior
Ed. Noir
384 pág.
Quanto: R.9