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domingo, 12 de agosto de 2018

Apesar da lei, 2 em cada 3 domésticas não têm carteira

Quase três anos depois de entrar em vigor a lei que garantiu todos os direitos do trabalhador às domésticas, 70% delas estão na informalidade. Desde outubro de 2015, quando passou a ser obrigatório o recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), as domésticas sem carteira assinada passaram de 4,2 milhões para 4,4 milhões, segundo dados do IBGE.

A implementação da lei coincidiu com o início da recessão, impedindo a formalização de muitas dessas trabalhadoras. “A lei pegou. Hoje as domésticas têm uma série de direitos garantidos, mas é caro manter um empregado formal. Com a crise, as pessoas tiveram de cortar gastos”, diz o advogado Carlos Eduardo Dantas Costa, sócio da banca Peixoto & Cury.

Faz um ano que a parcela de domésticas informais no País ultrapassou a casa dos 70% pela primeira vez desde 2012 (ano de início da série histórica) e, desde então, não deixou mais esse patamar. Ao mesmo tempo, o número de trabalhadoras com carteira assinada caiu (ler mais na pág. B4). Com uma renda menor, os brasileiros também passaram a assumir mais as tarefas domésticas – a taxa subiu de 81% para 84,5% entre 2016 e 2017, segundo o IBGE.

“A lei deu direitos trabalhistas a quem já trabalhava. Mas os encargos pesam na decisão de contratação formal. Talvez os impostos tenham incentivado a contratação avulsa de diaristas”, diz o economista Cosmo Donato, da LCA Consultores.

Com a entrada em vigor da lei, o número de profissionais que vai à Justiça para cobrar seus direitos aumentou. No ano passado, 906 domésticas ingressaram com ação no Tribunal Regional do Trabalho da 2.ª Região (São Paulo) pedindo o reconhecimento da relação empregatícia. O aumento é de 237% na comparação com 2015, ano em que o recolhimento do FGTS passou a ser obrigatório.

Com mais de 20 anos de trabalho como empregada doméstica, Aldenice Santana Souza, de 47 anos, recorreu à Justiça pela primeira vez neste ano. Trabalhou sempre com carteira assinada, menos no seu último emprego, em que ficou por um ano. “Quando comecei, meu patrão disse que eu teria carteira, mas isso nunca aconteceu.”

Em fevereiro, Aldenice tirou férias sem receber o pagamento adicional de um terço do salário. Quando retornou, foi dispensada sem aviso prévio. “O sindicato (das domésticas) já chamou meu ex-chefe para conversar duas vezes. Ele não apareceu. Eu preferia um acerto, para evitar o desgaste”, diz ela.

Por enquanto, Aldenice tem trabalhado revendendo roupas que compra na região do Brás, no centro de São Paulo. A partir da última semana de agosto, ela volta a trabalhar como doméstica, substituindo uma amiga que vai tirar férias – mais uma vez, será sem carteira assinada. Desde 2014, 330 mil domésticas perdem o registro

Enquanto o número de domésticas na informalidade avança em meio à crise econômica, o de empregadas registradas recua – um indicativo de que muitas estão perdendo os direitos trabalhistas recém-adquiridos. Desde 2014, quando a crise deu seus primeiros sinais, o total de trabalhadoras sem carteira aumentou 8,2%, enquanto o de empregadas com carteira diminuiu 1,6% – 330 mil perderam o registro. Ao todo, o efetivo de domésticas soma hoje 6,2 milhões de mulheres e representa quase 7% dos trabalhadores ocupados do País.

“As domésticas são vítimas da crise. Muitas trabalhavam no comércio ou na indústria, mas, com a falta de oportunidades, agora atuam como domésticas. Se abrirem vagas em outras áreas, elas vão sair dos atuais empregos”, diz Cimar Azeredo, coordenador de trabalho e rendimento do IBGE.

O economista Tiago Cabral Barreira, consultor do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), da FGV, destaca que o número de domésticas informais começou a crescer de forma mais acentuada a partir de meados de 2015. Parte delas estava fora do mercado de trabalho antes da recessão, mas acabou tendo de voltar para complementar a renda da família.

As domésticas deixaram a formalidade conforme o rendimento dos empregadores foi minguando. Com a renda menor, muitos trocaram mensalistas por diaristas.

Mesmo para aquelas que conseguiram uma vaga como diarista, a situação continua se deteriorando. Em março de 2016, uma diarista trabalhava, em média, 29,3 horas por semana; em março deste ano, eram 27,9 horas – queda de 4,8%. “Pelos dados, possivelmente, elas estão trabalhando menos do que gostariam”, diz o economista Cosmo Donato, da LCA Consultores.

Além de perderem seus direitos, muitas das domésticas que caíram na informalidade viram também sua renda recuar. A média salarial das empregadas sem carteira é hoje de R$ 730, o equivalente a 60% do salário das registradas.

A paulista Clélia Camila Domingues, de 53 anos, perdeu um terço de seu salário durante a recessão. Um de seus últimos trabalhos havia sido como governanta, pelo qual recebia R$ 1,5 mil por mês e tinha garantido seus direitos. Neste ano, porém, teve de trabalhar por quatro meses sem ser registrada e com um salário de R$ 1 mil. “No começo, disseram que eu teria carteira depois que conhecessem meu trabalho melhor. Depois, quando pedi o registro, falaram que eu podia sair”, conta. Agora, após pedir demissão, Clélia ganha seu dinheiro cozinhando para fora.

De acordo com a presidente do Sindicato das Empregadas e Trabalhadores Domésticos da Grande São Paulo (Sindoméstica), Janaína Mariano de Souza, a maioria das domésticas demitidas acaba recorrendo ao trabalho de diarista.

Futuro. Para os economistas, o panorama das domésticas não deve melhorar enquanto a taxa de desemprego do País permanecer elevada. No segundo trimestre deste ano, o desemprego ficou em 12,4% – um recuo de 0,6 ponto porcentual na comparação com o mesmo período de 2017, mas ainda atinge 13 milhões de brasileiros. “Enquanto o desemprego for alto, o número de domésticas informais vai subir porque é fácil entrar nesse mercado”, diz Donato da LCA.