Falta de plano de integração social está na raiz da desigualdade sentida 130 anos após Lei Áurea
- RENATO GRANDELLE
No dia 13 de maio de 1888, centenas de pessoas acompanharam os senadores que saíram do Palácio do Conde dos Arcos, no Campo de Santana, onde estava localizado o Congresso, até o Paço Imperial. Carregavam o documento que entrou para a História como Lei Áurea. Foi assinada com uma pena de ouro pela princesa regente Isabel, libertando os últimos 700 mil escravos do país. Jornais da época sublinharam o clima festivo — salva de palmas, chuva de flores, marcha de bandas pela Rua do Ouvidor. Mas não demorou para que o momento histórico fosse sucedido por uma série de incógnitas sobre o destino dos negros libertos — onde morariam, como sobreviveriam.
Exatos 130 anos depois, os reflexos do desamparo daquela população ainda estão presentes. A maior parte daqueles que moram em favelas é formada por pretos e pardos, assim como nos presídios. Nas universidades, em bairros nobres e na cúpula do poder, o quadro se inverte.
O Brasil recebeu 4,5 milhões de escravos africanos em 350 anos. No final do século XIX, era o último país das Américas a usar essa mão de obra. Para a elite, tratava-se de um sinal de atraso e inferioridade diante de nações civilizadas.
— Já se sabia que a escravidão ia acabar, faltava definir apenas como isso aconteceria — destaca Ynaê Lopes dos Santos, professora da Escola de Ciências da Fundação Getúlio Vargas (FGV). A instituição sediará, entre terça e sexta-feira, a segunda edição de um seminário internacional sobre Histórias do Pós-Abolição no Mundo Atlântico. — Não houve um plano de integração dos negros à sociedade. Na verdade, o Estado estava mais empenhado em incentivar a migração dos europeus e construir um “Brasil branco”, o que seria a chave para o progresso.
MIGRAÇÃO PARA A CIDADE
Passada a euforia, parte dos cariocas passou a temer a chegada dos negros que trabalhavam no cultivo de café no interior fluminense. A maioria dos libertos, porém, vagou por décadas pelo Vale do Paraíba, cumprindo serviços temporários em fazendas, onde eram obrigados a compartilhar sua produção com proprietários rurais.
Professora do Programa de Pós-Graduação de História da UFRJ, Carlos Eduardo Coutinho da Costa assinala que, entre as formas mais comuns de trabalho, estavam a empreitada — um contrato de apenas uma semana para realizar determinado serviço — e a meia, quando um ex-senhor de escravos permitia que negros plantassem em seu território. Em troca, dava metade de seu cultivo.
— Eram condições de trabalho horríveis — ressalta. — Além disso, não havia contratos escritos, os negros podiam ser expulsos a qualquer momento, e o proprietário levava bois para comer a plantação.
Com o colapso das grandes propriedades, filhos dos escravos libertos trocaram o Vale do Paraíba pela produção de laranjas na Baixada Fluminense. Abrigaram-se em lotes de fazendas decadentes em Mesquita e no entorno de Nova Iguaçu, e aos poucos avançaram para locais como Madureira, Praça Seca e Méier.
Costa avalia que a adesão do Estado ao abolicionismo foi uma relação dúbia. Havia, de fato, uma disposição de acabar com o trabalho forçado, tido como um sistema perverso, mas também faltou disposição para ajudar os negros libertos. Nas sátiras, eram constantemente alvo de deboche, comparados a macacos ou retratados como pessoas que tinham dificuldade para os atos mais simples ligados à civilização, como colocar um sapato.
Para Luara dos Santos Silva, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História Social da UFF, as mulheres negras eram ainda mais menosprezadas do que seus companheiros, porque não se encaixavam no conceito do que seria “feminino” em um país disposto a se tingir de branco.
— As revistas da época as abordavam de forma pejorativa, encaixando-as em estereótipos muito distantes do que seria o padrão de beleza ideal. Também eram oprimidas e, por isso, não tinham liberdade para participar do debate político — revela.
Ynaê reforça o protesto: a violência integrou a estrutura social da mulher negra, seja em casa ou em manifestações simbólicas, como a falta de associação entre sua figura e a maternidade.
Os escravos libertos fizeram o possível para conseguir seu espaço na sociedade. Representantes do movimento abolicionista criaram escolas noturnas, mas, na maioria dos casos, o projeto não foi à frente. No campo, não conseguiram emplacar uma reforma agrária que lhes garantisse a posse das terras que ocupavam. Nas cidades, enfrentaram dificuldades para entrar no mercado de trabalho formal. Revoltados com a falta de acolhimento político, muitos engrossaram as fileiras de líderes anarquistas na primeira década do século XX.
Segundo Júlio Cesar Dória, professor de História e doutorando da UFRJ, os negros também tentaram encaixar-se por vias mais tradicionais ao poder público, mas o resultado foi tímido.
— Em 1909, o advogado carioca Monteiro Lopes tornou-se o primeiro deputado federal negro do Brasil, mas ele não tinha respaldo dos anarquistas, que criaram jornais como “A voz do trabalhador” para denunciar a suposta farsa da democracia e do processo eleitoral — explica.
SEGREGAÇÃO NÃO FOI SUPERADA
Até hoje, os negros continuam longe do poder. Em 2016, 54,9% da população brasileira era de pretos e pardos. Ainda assim, eles corresponderam a apenas 29% dos prefeitos eleitos na eleição municipal daquele ano, segundo o Tribunal Superior Eleitoral.
— Praticamente não há negros entre as figuras mais influentes dos três poderes, porque a cor da pele ainda é pauta de poucos partidos políticos — critica Ynaê, que analisa por que negros elegem candidatos brancos. — Muitos eleitores votam de acordo com as pessoas que gostariam de ser, e não baseadas no que elas são.
A violência contra a mulher negra permanece como uma evidência da desigualdade racial. Levantamento divulgado no início do mês pelo Instituto de Segurança Pública mostra que as mulheres pretas e pardas são a maioria das vítimas de lesão corporal (53,3%), homicídio (61%) e estupros e tentativas de estupro (56,1%).
— As mulheres negras continuam na base da pirâmide social brasileira — lamenta Luara. — Continuam excluídas da estrutura econômica do país e sem acesso à educação. Desta forma, também estão fora do mercado do trabalho, já que conhecimento é poder.
A distribuição populacional no Rio é outra amostra de como a segregação do final do século XIX não foi superada. Uma pesquisa realizada no ano passado pela prefeitura revelou que pretos e pardos equivalem a 79% dos moradores de rua da cidade.
— O Rio já foi a cidade mais escravocrata do mundo — conta Ynaê. — Com o fim da escravidão e o advento da República, houve um processo de higienização e, nas décadas seguintes, de remoção de diversas favelas na Zona Sul. Nos bairros mais nobres, o negro não está no asfalto.
O GLOBO