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domingo, 18 de março de 2018

Crucificação social será retratada em Via Sacra da Rocinha, no Rio

André Martins, protagonista pela sétima vez, fará agora um Jesus mais próximo do morador
Uma comunidade gigante como a Rocinha é um prato cheio para reportagens de jornal. A maioria delas, no entanto, fala da violência e da precariedade ou toca nesses pontos, ainda que a premissa não seja abordá-los. Dos muitos temas que essa favela tem a propor, um dos que passam longe do tópico segurança é a Via Sacra da Rocinha, espetáculo que reconstitui os momentos finais de Jesus Cristo como homem. É o que diz o ator André Martins, que este ano interpreta o filho de Deus pela sétima vez.
A encenação é realizada há 26 anos. Para Martins, o mais importante é que o teatro sempre ajudou a reforçar a história de luta da Rocinha — construída na marra, num espaço onde os primeiros moradores não foram bem-vindos.
Em 2018, inclusive, a Roça Caçacultura — companhia de teatro por trás do espetáculo — queria homenagear a origem nordestina de uma grande parcela da comunidade, que a moldou à imagem de sua região natal. Mas mudou de ideia pelo momento atual da favela, tensionada pelas disputas recentes entre facções criminosas e por seus conflitos com a polícia. Insistir nas mazelas do dia a dia se tornou uma necessidade do grupo, que desta vez vai retratar a Paixão de Cristo como uma metáfora da “crucificação social”, na definição de Robson Melo, diretor artístico da peça pelo segundo ano.
— Essa crucificação está representada no abandono completo do morro por parte dos governos, que provoca não apenas a violência física, mas
outras formas de agressão, como as causadas pelos problemas de infraestrutura — diz.
O estigma que persegue os moradores inspirou uma nova postura do protagonista. O Jesus da via-crúcis local, que já foi negro e gay em outras edições, agora é representado como um homem ainda mais próximo da comunidade, alguém que se compadece da dor do outro não apenas por entendê-la, mas por compartilhar do sofrimento. Do alto de sua humanidade, o nazareno chega perto de quem assiste ao seu martírio e simbolicamente propõe uma união de forças para superar as adversidades.
— Já fui um Jesus mais guerreiro, militante. Também já fui um Jesus mais ponderado e místico. Não achava que conseguiria mais variações, mas Robson e eu começamos a lapidar esse outro lado de Cristo. As cenas eram feitas muito de cima para baixo, com o personagem no alto. Agora ele vai ter mais contato com o público — detalha André Martins. — Se a história de Jesus se passasse nos dias de hoje, ele seria de alguma periferia do mundo. Sentiria as necessidades do entorno.
Acostumados a percorrer um trajeto que beira três quilômetros de extensão, Martins e os demais atores da companhia desta vez não vão cumprir o itinerário que fazem pela Rocinha todos os anos, por causa do orçamento reduzido. Normalmente, a procissão tem início no Largo do Boiadeiro e vai até a Paróquia de Nossa Senhora da Boa Viagem, mas agora ficará restrita ao ponto de partida. Haverá quatro palcos no largo, dois em cada ponta, ficando o meio livre para o público, e a encenação deve durar pouco menos de duas horas. A Via Sacra será no dia 30, a Sexta-Feira Santa, a partir das 20h.a