Levantamento
inédito com números do Conselho Nacional de Justiça revela que benefícios como
auxílio-moradia e gratificações representam um terço dos contracheques
Dois em
cada três juízes dos tribunais de Justiça dos estados e do Distrito Federal
recebem acima do teto constitucional, de R$ 33.763. A disparidade entre o
limite e o que efetivamente aparece no contracheque de 11,6 mil magistrados
(71,4% do total) se deve a uma brecha legal que retira do cálculo as verbas
indenizatórias, como dinheiro extra para moradia, alimentação e gratificações.
Os dados
foram comparados com base nas folhas de pagamento enviadas, pela primeira vez e
em um mesmo padrão, pelos tribunais ao Conselho Nacional de Justiça. Assim, é
possível verificar o peso dos benefícios nos salários, que chega a 33%, em média.
Em um único mês, 52 juízes e desembargadores tiveram remuneração superior a R$
100 mil. Folhas de pagamento entregues este mês ao Conselho Nacional de Justiça
(CNJ) por tribunais de todo o país mostram que, ao menos nas cortes estaduais,
receber remunerações superiores ao teto constitucional é regra, não exceção.
Levantamento
do Núcleo de Dados do GLOBO, com base nas informações salariais divulgadas pela
primeira vez pelo CNJ, aponta que, nos últimos meses, 71,4% dos magistrados dos
Tribunais de Justiça (TJs) dos 26 estados e do Distrito Federal somaram
rendimentos superiores aos R$ 33.763 pagos aos ministros do Supremo Tribunal
Federal (STF) — valor estabelecido como máximo pela Constituição.
Dos mais de
16 mil juízes e desembargadores dos TJs, 11,6 mil ultrapassaram o teto. A
remuneração média desse grupo de magistrados foi de R$ 42,5 mil. Nessa conta,
auxílios, gratificações e pagamentos retroativos têm peso significativo e
chegam a representar um terço do rendimento mensal — cálculo que só pôde ser feito
a partir da exigência do CNJ de receber as folhas completas num único padrão.
No
levantamento, O GLOBO desconsiderou os benefícios a que todos os servidores dos
Três Poderes têm direito: férias, abono permanência e 13º salário. Em alguns
estados, foi usada como referência a folha de novembro; em outros, a de outubro
ou setembro, dependendo da que foi divulgada.
Não é
possível, no entanto, afirmar que os pagamentos são irregulares e ferem a lei.
A Constituição define como teto os salários dos ministros do STF, mas abre
margem para exceções ao retirar “parcelas de caráter indenizatório previstas em
lei” do cálculo. Os tribunais argumentam que determinados auxílios, como
moradia e alimentação, e os chamados direitos eventuais, entre os quais as
gratificações por exercício cumulativo e os pagamentos retroativos, não são
considerados na conta do teto constitucional. Os órgãos afirmam seguir as
resoluções do CNJ, que fiscaliza o Judiciário e especifica quais auxílios devem
ficar de fora do limite.
Procurado,
o CNJ declarou que, no momento, apenas recebe os dados e os divulga, sem
análise. Ainda que o órgão tenha ampliado a transparência dos salários no
Judiciário, a maioria das planilhas divulgadas na página do conselho na
internet estava bloqueada, recurso que impede o cruzamento dos dados.
Para fazer
o levantamento, O GLOBO precisou remover a proteção das planilhas. O CNJ
argumentou que os dados foram fechados por “segurança”. Os dados mostram que,
em alguns estados, a proporção de remunerações acima do teto foi ainda maior.
Ao todo, 14 tribunais tiveram percentuais de magistrados com rendimentos
extrateto maiores do que a média nacional. No Amapá, apenas um dos 97
magistrados não ultrapassou o limite fixado pela Constituição. Em
Minas Gerais, Piauí, Amazonas e Maranhão, 90% dos juízes e desembargadores
também tiveram rendimentos superiores ao teto. Os menores percentuais
foram encontrados nos TJs do Espírito Santo (23%), do Mato Grosso (34%) e da
Bahia (45%).
EM
RONDÔNIA, A MÉDIA É DE R$ 68,8 MIL
O Tribunal
de Justiça de Rondônia registrou o maior rendimento médio do país. Lá, a
remuneração ficou em R$ 68,8 mil em novembro. No estado, as indenizações —
compostas por auxíliosmoradia, alimentação, saúde e pagamentos retroativos
desses benefícios — corresponderam, em média, a mais da metade do rendimento de
juízes e desembargadores no mês passado. Ao todo, nove cortes tiveram média
salarial mais alta que a nacional. Nos tribunais do Mato Grosso do Sul e do
Acre, ultrapassaram os R$ 50 mil.
Outro
seleto grupo de magistrados chama atenção. São 52 juízes e desembargadores que
somaram remunerações que ultrapassaram R$ 100 mil em um único mês. Uma juíza do
Paraná, por exemplo, teve rendimento de R$ 235 mil em novembro. Trata-se do
maior vencimento registrado em todo o país. Na lista, estão ainda 38
magistrados do Tribunal de Justiça de Rondônia.
Nem mesmo o
fator de redução salarial, criado para impedir que juízes e desembargadores
furem o teto, consegue cumprir o seu objetivo. Apenas 2% de todos os
magistrados do país sofreram algum tipo de corte nos rendimentos por causa do
limite imposto pela Constituição. A explicação é, de novo, que uma série de
“penduricalhos” acaba excluída do cálculo do teto.
Auxílio-moradia, o grande nó
O pagamento de remunerações superiores ao teto constitucional em
todos os Poderes é tema de um Projeto de Lei (PL) em tramitação na Câmara dos
Deputados, após ter sido aprovado no Senado no fim do ano passado. A
iniciativa, que aguarda a análise de uma comissão especial criada para debater
o tema, propõe redefinir o que deve ou não ser submetido ao teto remuneratório.
O centro da polêmica é o auxílio moradia, concedido a juízes e procuradores
desde 2014, por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).
O relator do projeto na comissão especial, deputado Rubens Bueno
(PPS-PR), prevê que a votação no plenário aconteça já em 2018. No caso do
Judiciário, além do auxílio-moradia, Bueno chama a atenção para o fato de os
juízes poderem vender parte do período de 60 dias de férias a que têm direito,
o que também pode gerar remunerações acima do teto previsto em lei.
— O Poder Judiciário considera as verbas regulares, mas eles
mesmos admitem que o auxílio-moradia foi uma forma de sair do teto em época de
crise e inflação. Sabemos também que nem todos os membros pensam assim. Há
aqueles que consideram a conduta antiética e imoral, mas não se indisporiam com
a própria classe — afirma o parlamentar. — O auxílio-moradia é emblemático. Não
há justificativa para que a parcela seja indenizatória. Ela não indeniza, mas
sim remunera.
O deputado argumenta que a falta de acesso a informações sobre
as remunerações tem dificultado o andamento do projeto. Bueno diz que ainda não
recebeu dados solicitados sobre pagamentos dos últimos 12 meses, especialmente
do Judiciário. As informações só chegaram esta semana, mas não estão no formato
solicitado.
Para o professor de Direito da FGV Rio Michael Mohallem, os
tribunais cumprem o que determina o CNJ, mas a discussão deve ser se as normas
do conselho fazem sentido.
— O caminho me parece ser o de regulamentar quais verbas
indenizatórias podem ser excluídas (da conta do teto) e em quais
circunstâncias. Exemplo óbvio é o auxílio-moradia — avalia Mohallem. (Marlen
Couto)