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domingo, 5 de novembro de 2017

O Globo - Chão de estrelas

Nomes de peso da MPB embarcam nas disputas de sambas-enredo, emprestando sua musicalidade a uma corrida cada vez mais profissional e custosa
Mart’nália ficou amarradona quando soube que o enredo da Unidos da Tijuca para 2018 seria “Um coração urbano — Miguel, o arcanjo das artes, saúda o povo e pede passagem”, sobre seu amigo Falabella, autor da série “Pé na cova”, em que ela atuava.
— Pensei em compor um samba para ele, mas não era a minha escola, né? — diz a filha de Martinho da Vila, de coração azul e branco. — Até comentei com meu pai, e ele sugeriu fazer um samba para o Miguel e não concorrer, só como homenagem. Mas então o telefone começou a tocar...
Resultado: ao lado de Totonho, Dudu, Marcelinho Moreira e Fadico, Tinália assina o hino da escola do Morro do Borel para o próximo carnaval. Ela é exemplo de um movimento que tem crescido entre nomes de peso da MPB, como Dudu Nobre, Moacyr Luz, Altay Veloso e Elymar Santos, entre outros.
— Eu não conhecia quase ninguém na escola, fui muito bem recebida por lá — conta ela, que tem o sonho de produzir um disco de sambas-enredo compostos por compositores da MPB como Lenine e Moska. — É claro que na hora da disputa é cada um para o seu lado, mas foi tudo num clima legal. Por sorte, a Vila Isabel e a Tijuca desfilam em dias diferentes, então fica tudo relax. E eu ainda ganhei do Dudu Nobre (gargalhadas)!
Cria da Mocidade e compositor-mirim de escolas como Aprendizes do Salgueiro e Alegria da Passarela, o cantor de “A grande família” e “Tempo de Don Don” voltou aos sambas-enredo há poucos anos, já consagrado como artista solo.
— Em 2014, a Mocidade estava num momento complicado, quase foi rebaixada, e a diretoria chamou de volta algumas pessoas de lá, como a minha irmã (a porta-bandeira Lucinha Nobre, hoje na Portela) e eu — conta Dudu, que emplacou na verde-ebranco da Zona Oeste o samba “Pernambucópolis”, ao lado de parceiros, iniciando um processo de recuperação que culminou no campeonato de 2017, dividido com a Portela, com o enredo “As mil e uma noites de uma Mocidade pra lá de Marrakesh”.
Os autores do samba campeão em Padre Miguel conquistaram o bi na disputa deste ano. Entre eles está mais um compositor que não figura entre os tradicionais nomes das escolas.
— Sempre fui apaixonado por carnaval, mas nunca tinha acompanhado uma disputa de perto, até que a minha ópera “O Alabê de Jerusalém” inspirou o enredo da Viradouro em 2015 — conta Altay Veloso, autor, ao lado de Paulo César Feital e outros parceiros, de “Namastê: a estrela que habita em mim saúda a que existe em você”, com que a Mocidade defenderá o título (seu primeiro em 21 anos), encerrando o desfile de domingo, dia 11 de fevereiro de 2018. — Depois daquilo, fui convidado a vir para a Mocidade, onde estou muito feliz, a ala dos compositores é maravilhosa, fui muito bem recebido. Os três sambas que foram à final eram lindos, qualquer um dos três poderia ir para o desfile.
Altay, Mart’nália e Dudu estão aprendendo que concurso de samba-enredo não é para amadores. Não basta ler a sinopse, conversar com o carnavalesco, sentar no botequim com os amigos e pensar numa bela melodia, que conte bem o enredo.
— Uma campanha de samba-enredo em uma escola do Grupo Especial custa R$ 70 mil, R$ 80 mil, podendo chegar até a R$ 200 mil — conta Dudu. — O lucro que a parceria tem é variável, pode ser de R$ 300 mil a mais de R$ 400 mil. Só que a escola fica com parte dessa grana, às vezes 50%... Então o compositor pode sair com uma merreca.
Puxador do Salgueiro e produtor do disco das escolas da Série A, Leonardo Bessa reitera:
— Engana-se quem pensa que compositor de samba-enredo fica milionário — diz. — Em muitos casos, ele tem que dar graças a Deus se cobrir os gastos que teve ao longo da disputa. 
O custo e o estresse de uma campanha de samba-enredo foram fatores que fizeram Elymar Santos, ferrenho torcedor da Imperatriz, jamais concorrer com um samba em sua escola. Até 2014.
— A quadra era no quintal da minha casa, eu nasci dentro da escola — conta Elymar. — Nunca tinha pensado em fazer samba, mas me convenceram e acabamos ganhando, no ano do Zico ( o craque foi enredo da escola em 2014). De lá para cá, fiz todos os anos, mas não ganhei mais.
Ele confessa que não é fã da competição, mesmo cordial.
— Eu gosto de me manifestar, de torcer para o samba que achar melhor — diz. — Meus parceiros até brigam comigo porque volta e meia estou cantando o samba de um concorrente. Quero sempre o melhor para a escola.
Elymar mete a cara (e a grana) no lado comercial da disputa.
— Saio sempre no prejuízo — confessa. — Quero fazer uma Hollywood lá dentro! A disputa está muito cara, mas, na Imperatriz, isso não é culpa da escola, é dos concorrentes. Um vê o outro com camisetas e alegorias legais, quer logo trazer um helicóptero.
Um experiente compositor de sambas-enredo, que prefere não se identificar, diz que na maioria das escolas o alto investimento é uma exigência.
— A parceria tem que ter pelo menos um clipe no YouTube com o samba bem gravado, em estúdio, para entrar na disputa — diz ele. — Algumas começam com menos grana, devagar, mas outras, quando têm um investidor forte, entram com o pé na porta, com direito a caminhão de som com telão de LED passando o clipe.
Como as contradições são um dos elementos essenciais da Sapucaí — onde mais contraventores, policiais e políticos convivem em tanta harmonia? —, há escolas fazendo o caminho inverso: em vez de uma disputa movimentando milhões, a diretoria encomenda a obra a compositores como Moacyr Luz.
— A Renascer de Jacarepaguá me convidou em 2014, quando o enredo era o cartunista Lan — lembra o autor de “Saudades da Guanabara”. — Eles gostaram, e desde então faço sempre o samba lá, com parceiros como Cláudio Russo e Teresa Cristina. Neste ano fui convidado pelo Paraíso do Tuiuti, e terei a honra de estrear no Grupo Especial.
Profissionalismo à parte, Mart’nália é a primeira a lembrar que samba é paixão:
— Quero muito que a Tijuca vá bem, desde que fique atrás da minha escola no fim.