Nomes de peso da MPB embarcam nas
disputas de sambas-enredo, emprestando sua musicalidade a uma corrida cada vez
mais profissional e custosa
Mart’nália ficou
amarradona quando soube que o enredo da Unidos da Tijuca para 2018 seria “Um
coração urbano — Miguel, o arcanjo das artes, saúda o povo e pede passagem”,
sobre seu amigo Falabella, autor da série “Pé na cova”, em que ela atuava.
— Pensei em compor
um samba para ele, mas não era a minha escola, né? — diz a filha de Martinho da
Vila, de coração azul e branco. — Até comentei com meu pai, e ele sugeriu fazer
um samba para o Miguel e não concorrer, só como homenagem. Mas então o telefone
começou a tocar...
Resultado: ao lado
de Totonho, Dudu, Marcelinho Moreira e Fadico, Tinália assina o hino da escola
do Morro do Borel para o próximo carnaval. Ela é exemplo de um movimento que
tem crescido entre nomes de peso da MPB, como Dudu Nobre, Moacyr Luz, Altay
Veloso e Elymar Santos, entre outros.
— Eu não conhecia
quase ninguém na escola, fui muito bem recebida por lá — conta ela, que tem o
sonho de produzir um disco de sambas-enredo compostos por compositores da MPB
como Lenine e Moska. — É claro que na hora da disputa é cada um para o seu
lado, mas foi tudo num clima legal. Por sorte, a Vila Isabel e a Tijuca
desfilam em dias diferentes, então fica tudo relax. E eu ainda ganhei do Dudu
Nobre (gargalhadas)!
Cria da Mocidade e
compositor-mirim de escolas como Aprendizes do Salgueiro e Alegria da
Passarela, o cantor de “A grande família” e “Tempo de Don Don” voltou aos
sambas-enredo há poucos anos, já consagrado como artista solo.
— Em 2014, a
Mocidade estava num momento complicado, quase foi rebaixada, e a diretoria
chamou de volta algumas pessoas de lá, como a minha irmã (a porta-bandeira
Lucinha Nobre, hoje na Portela) e eu — conta Dudu, que emplacou na
verde-ebranco da Zona Oeste o samba “Pernambucópolis”, ao lado de parceiros,
iniciando um processo de recuperação que culminou no campeonato de 2017,
dividido com a Portela, com o enredo “As mil e uma noites de uma Mocidade pra
lá de Marrakesh”.
Os autores do samba
campeão em Padre Miguel conquistaram o bi na disputa deste ano. Entre eles está
mais um compositor que não figura entre os tradicionais nomes das escolas.
— Sempre fui
apaixonado por carnaval, mas nunca tinha acompanhado uma disputa de perto, até
que a minha ópera “O Alabê de Jerusalém” inspirou o enredo da Viradouro em 2015
— conta Altay Veloso, autor, ao lado de Paulo César Feital e outros parceiros,
de “Namastê: a estrela que habita em mim saúda a que existe em você”, com que a
Mocidade defenderá o título (seu primeiro em 21 anos), encerrando o desfile de
domingo, dia 11 de fevereiro de 2018. — Depois daquilo, fui convidado a vir
para a Mocidade, onde estou muito feliz, a ala dos compositores é maravilhosa,
fui muito bem recebido. Os três sambas que foram à final eram lindos, qualquer
um dos três poderia ir para o desfile.
Altay, Mart’nália e
Dudu estão aprendendo que concurso de samba-enredo não é para amadores. Não
basta ler a sinopse, conversar com o carnavalesco, sentar no botequim com os
amigos e pensar numa bela melodia, que conte bem o enredo.
— Uma campanha de
samba-enredo em uma escola do Grupo Especial custa R$ 70 mil, R$ 80 mil,
podendo chegar até a R$ 200 mil — conta Dudu. — O lucro que a parceria tem é
variável, pode ser de R$ 300 mil a mais de R$ 400 mil. Só que a escola fica com
parte dessa grana, às vezes 50%... Então o compositor pode sair com uma
merreca.
Puxador do
Salgueiro e produtor do disco das escolas da Série A, Leonardo Bessa reitera:
— Engana-se quem
pensa que compositor de samba-enredo fica milionário — diz. — Em muitos casos,
ele tem que dar graças a Deus se cobrir os gastos que teve ao longo da
disputa.
O custo e o
estresse de uma campanha de samba-enredo foram fatores que fizeram Elymar
Santos, ferrenho torcedor da Imperatriz, jamais concorrer com um samba em sua
escola. Até 2014.
— A quadra era no
quintal da minha casa, eu nasci dentro da escola — conta Elymar. — Nunca tinha
pensado em fazer samba, mas me convenceram e acabamos ganhando, no ano do Zico
( o craque foi enredo da escola em 2014). De lá para cá, fiz todos os anos, mas
não ganhei mais.
Ele confessa que
não é fã da competição, mesmo cordial.
— Eu gosto de me
manifestar, de torcer para o samba que achar melhor — diz. — Meus parceiros até
brigam comigo porque volta e meia estou cantando o samba de um concorrente.
Quero sempre o melhor para a escola.
Elymar mete a cara
(e a grana) no lado comercial da disputa.
— Saio sempre no
prejuízo — confessa. — Quero fazer uma Hollywood lá dentro! A disputa está
muito cara, mas, na Imperatriz, isso não é culpa da escola, é dos concorrentes.
Um vê o outro com camisetas e alegorias legais, quer logo trazer um
helicóptero.
Um experiente
compositor de sambas-enredo, que prefere não se identificar, diz que na maioria
das escolas o alto investimento é uma exigência.
— A parceria tem
que ter pelo menos um clipe no YouTube com o samba bem gravado, em estúdio,
para entrar na disputa — diz ele. — Algumas começam com menos grana, devagar,
mas outras, quando têm um investidor forte, entram com o pé na porta, com
direito a caminhão de som com telão de LED passando o clipe.
Como as contradições
são um dos elementos essenciais da Sapucaí — onde mais contraventores,
policiais e políticos convivem em tanta harmonia? —, há escolas fazendo o
caminho inverso: em vez de uma disputa movimentando milhões, a diretoria
encomenda a obra a compositores como Moacyr Luz.
— A Renascer de
Jacarepaguá me convidou em 2014, quando o enredo era o cartunista Lan — lembra
o autor de “Saudades da Guanabara”. — Eles gostaram, e desde então faço sempre
o samba lá, com parceiros como Cláudio Russo e Teresa Cristina. Neste ano fui
convidado pelo Paraíso do Tuiuti, e terei a honra de estrear no Grupo Especial.
Profissionalismo à
parte, Mart’nália é a primeira a lembrar que samba é paixão:
— Quero muito que a
Tijuca vá bem, desde que fique atrás da minha escola no fim.