No
início de “Caravanas” (Biscoito Fino), na faixa “Tua cantiga”, o narrador de
Chico Buarque põe em dúvida sua própria fala, num sofisticado jogo de espelhos
no qual “rouba” versos de Shakespeare (“Ou estas rimas não escrevi/ Ou ninguém
nunca amou”). Em “As caravanas”, que encerra o disco, o poeta volta a se
questionar, atônito ao observar a opressão sem sentido que se dá nas praias da
Zona Sul aos jovens negros (ou ao descobrir os sentidos presentes ali): “Tem
que bater, tem que matar/ Engrossa a gritaria/ Filha do medo, a raiva é mãe da
covardia/ Ou doido sou eu que escuto vozes/ Não há gente tão insana/ Nem
caravana do Arará”.
Este
diálogo é apenas um da teia do disco. O fato de a primeira ser um lundu (ritmo
originário da África que passou por um processo de “embranquecimento” nos
salões da virada do século XIX para o XX) e a última ter, em meio à orquestra,
a presença do tamborzão (ritmo originário das favelas, derivação do maculelê ao
ser apropriado pelo funk carioca) acrescenta mais camadas ao álbum. Ou mesmo
remete a conversas mais amplas: “Chico” (disco de 2011), terminava com a
primorosa “Sinhá”, que tratava exatamente da complexidade da questão racial no
Brasil. “Caravanas” carrega, enfim, essa densidade, pensando o termo como a
concentração de muito em pouco espaço, como os facões e adagas malocados nas
sungas dos moleques de “picas enormes” e sacos-granadas de “As caravanas”.
O
disco traz apenas nove faixas, que se desenrolam em mil — para dentro de si e
na relação com as outras. Vários fios o cruzam. Há o narrador que duvida
(presente também em “Dueto” e em “Desaforos”); há as musas inalcançáveis (de
“Tua cantiga”, “Blues pra Bia”, “A moça do sonho”, “Desaforos” e
“Casualmente”); há a percepção tranquila da proximidade da velhice (“Jogo de
bola”) se espelhando na potência do menino que brinca à beiramar
(“Massarandupió”); há a observação social (a palavra “denúncia” seria redutora
para um artista que trabalha em perspectivas bem mais profundas) do racismo de
Estado e da elite — e também dos Estados e das elites, já que a canção toca em
outras migrações que vão além da Zona Norte-Zona Sul, ao citar muçulmanos e ao
fazer referência a uma cena de “O estrangeiro”, de Albert Camus, na qual um
francês mata um árabe na praia (“As caravanas”). Há o amor que consta não só
nas bulas, no evangelho, nos búzios, mas também no Tinder, no WhatsApp, no Face
(“Dueto”). Há a ternura em resposta à ofensa, numa canção de amor não
correspondido que se resolve aí, mas que pode ser transposta também para o
universo das redes sociais e seu gosto pela maledicência (“Desaforos”).
Costurando
todos esses fios, está o tempo, e a consciência que o compositor tem dele. É o
tempo que Chico finge driblar (o que não consegue, assume com sábio bom humor)
na melodia arisca como um menino peladeiro de “Jogo de bola”. A letra carrega a
velocidade de raciocínio que as pernas não respondem mais: “Há que levar um
drible/ Por entre as pernas sem perder a linha/ (...) Como quem tira o chapéu
pra mulher que lhe deu o fora”. É com o tempo que Chico pinta “Massarandupió”,
ritmando polissílabos como com vocábulos como “piá”, “psiu”, “xuá" sobre a
melodia de Chico Brown, seu neto. O fato de ter trazido para o disco também sua
neta, Clara Buarque (que divide “Dueto” com ele), reafirma que “Caravanas” se
escreve sobre a pauta do tempo.
É
no hoje que Chico se localiza para cantar o amor (possessivo, de entrega
doentia) de “Tua cantiga”. É no instante impreciso e mágico do tempo chamado
por Chico de “el encanto de la casualidad”, que se instala “Casualmente”,
bolero sinuoso, parceria com Jorge Helder, que se passa em Cuba — não aquela
para onde insistem em mandá-lo em meio ao não debate que toma conta do cenário
político, mas uma Cuba remota da voz remota de uma mulher remota. Já a “mulher
do sonho” flutua entre tempos, numa dimensão inatingível por seu amante.
Igualmente inatingível a ele é a dimensão onde está a musa contemporânea do
“Blues pra Bia” (“No coração de Bia/ Meninos não têm lugar”).
Os
mais de cem anos que afastam o lundu do tamborzão, e os amores e as dores que
se deram nesse tempo, são a matéria de “Caravanas”. A presença sutil do funk
carioca é a maior ousadia formal no sentido de “atualização” (outra perspectiva
redutora) da sonoridade de Chico. Os arranjos de Luiz Cláudio Ramos servem
lindamente às canções e as colorem em diferentes paletas: a delicadeza do
discurso de “Desaforos” conversa com a suavidade do vibrafone e do piano; a
grandiosidade de “As caravanas”, que vai de Istambul à Maré, ganha sustentação
na orquestração épica; “Massarandupió” tem elegância pop e praieira em seus
sopros e cordas — reflexos do Jobim de “Wave”.
De O Globo