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domingo, 15 de janeiro de 2017

O dia em que um engenheiro liberal maranhense teve de saudar Hitler

 Recife/Hamburgo, 1934


    Corria em família, no Recife, na minha infância, a anedota de que um político só era grande quando movido a álcool. Eu via nas risadas dos adultos a imagem de um dos nossos patrícios, eleito ou imposto, tropeçando em uísque.
Família de Passos no final dos anos 1930; seu pai, criança, pisca ao lado do arcebispo de Recife


    Mas a verdade é que, crescido nos anos 1970, animado a brigadeiro e rock, eu não alcançava a razão cômica da parentela. A piada tinha raízes mais profundas. Datava da época em que meu avô implantou a destilação de álcool na usina em que nasci.
    
    No dia 2 de novembro de 1934, Dia de Finados, meu avô, engenheiro químico, liberal, ateu, maranhense, embarcou no Graf Zeppelin rumo à Alemanha. Aos 29 anos, partia a serviço de um industrial conhecido em Pernambuco pela alcunha de Tenente. A passagem custava mais de cinco contos de réis, e ele ia acompanhado por Hans Sievert, gerente da filial Herm Stoltz & Cia., de Hamburgo, que também lhe serviria de intérprete.

    Sua missão era simples. Getulio Vargas, com quem o Tenente mantinha relações tensas, havia imposto limites à produção açucareira, cuja crise nas cotações internacionais coincidira com a Revolução de 1930. O que fazer com o excedente de cana nos campos nordestinos? A solução era verter a cana em álcool, para uso combustível ou na indústria farmacêutica e de perfumaria. Meu avô precisava trazer as plantas de fabrico e comprar a maquinaria necessária à produção de anidro, ou etanol, no Estado.

    A experiência inaugural de uso do etanol como combustível no Brasil aconteceu em 1925, com o primeiro carro a álcool. Ele rodou, aparentemente, em 1927. Durante a Segunda Guerra Mundial, os mísseis V-2, alemães, voavam com álcool feito a partir de batatas. A Alemanha possuía a tecnologia já fazia anos, e meu avô partia em busca dessa fórmula.

    O zepelim levava 24 passageiros. O percurso durava 80 horas. Os dois viajantes, ele e Hans Sievert, chegaram ao campo de pouso, no lago Constança, no dia 5 de novembro à meia-noite. O zepelim soltou dois maços de cordas com terminais ramificados, logo puxados pelo pessoal de solo até que os amortecedores da cabine tocassem o chão.

    Naquele ano, quando finalmente chegou a Hamburgo com Hans Sievert, meu avô teve uma surpresa que registrou em suas memórias, deixadas para mim, o neto de 14 anos, em 1985, ano de sua morte:

    "Durante minha permanência, lá esteve um personagem muito mais importante do que eu: o cabo austríaco a quem seus oponentes davam o nome de Herr Schicklgruber, mas que nunca foi conhecido por outro nome que não o de Hitler. O hotel Vier Jahreszeiten estava invadido por elementos da Gestapo. Hans Sievert, que tinha suas simpatias pela suástica, me convidou a uma parada militar. Realmente, o espetáculo horroroso do desfile de todos aqueles jovens fanáticos, perfeitamente treinados, marchando num passo de ganso, era digno de ser visto. Sievert me advertiu: quando passar o carro do Führer, levante o braço, para evitar ser insultado ou agredido. Quando um carro preto passou à nossa frente, em marcha moderada, precedido de batedores, acompanhei a multidão no gesto simbólico. Os gritos de 'Heil Hitler' eram ensurdecedores. E foi possível perceber, a distância, que, pelo bigode característico, o passageiro da direita era mesmo Hitler".

    De volta ao Recife, meu avô casou-se com a filha do patrão. Meu pai nasceu no ano seguinte. O álcool entrou na pauta comercial do Estado. Hitler declarou guerra ao mundo e Hans Sievert abandonou o cargo de gerência.

    Na foto em destaque, meu pai, miúdo, pisca um olho ao lado do arcebispo de Olinda e Recife. Meu avô, de terno cinza, no alto, à direita, mantém um ar desconfiado. Já colecionava artigos de jornal contra o nazismo, enquanto o Tenente, seu patrão e sogro, meu bisavô, inimigo de Vargas, olha ao longe, cabelos brancos, provavelmente pensando que o político que se quisesse grande, de verdade, agora iria precisar de seu álcool.
JOSÉ LUIZ PASSOS, 45, professor de literatura da Universidade da Califórnia, é autor de "O Marechal de Costas" (Alfaguara)