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segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Um novo livro de Nauro Machado

“Canções de roda aos pés da noite”, livro inédito do escritor será lançado na terça-feira, às 19h, na Academia Maranhense de Letras

    A família do poeta Nauro Machado, juntamente com a Academia Maranhense de Letras, lançará na próxima terça-feira (dia 2 de agosto), às 19 h, dois livros do escritor, Canções de roda aos pés da noite, livro deixado pelo poeta que faleceu em novembro do ano passado, e Erasmo Dias e Noites, reeditado agora pela Academia Maranhense de Letras. Os lançamentos ocorrerão no salão da AML; o primeiro, pelos 81 anos de Nauro Machado, e, o segundo, pelo centenário de nascimento, este ano, de Erasmo Dias.
    A programação prevê a exibição do curta Infernos, de Frederico Machado (com 12 minutos), seguido de um recital com poemas de Nauro. Seguindo-se à apresentação do recital, serão lançados o livro de Nauro, editado pela Contracapa do Rio de Janeiro, com fotografias de Márcio Vasconcelos, e Erasmo Dias e Noites.
   Transcrevemos nesta oportunidade uma crônica de José Chagas, publicada em 2006 sobre “Infernos”, onde Nauro, como personagem de si mesmo, recita alguns de seus poemas, vivenciando o terrível clima de São Luís no costumeiro périplo e desespero do poeta, cidade que lhe sangrou a alma e que foi potencial alvo e personagem do seu canto. O poeta, num de seus poemas mais dolorosos e veementes, queixa-se:
“Vozes me dizem: “Eh, tu aí! E me mandam bater
serviços de excrementos em papéis caídos
numa máquina Remington, ou outra qualquer.
E me mandam para o inferno, se inferno houvesse
pior que este inumano existir burocrático.
E depois há o escárnio de minha província.
E a minha vida para cima e para baixo.
(…)
Estranhos uns aos outros, que faço eu aqui? (…)”
    Esse escárnio, de alguns, e esse existir burocrático, cercado de humilhações, eram-lhe compensados, felizmente, pelo respeito e consideração da melhor crítica literária, do povo de São Luís e dos amigos. Ele sabia como ninguém “que não se vive impunemente em São Luís do Maranhão.”

Um Milagre No Inferno
José Chagas
    Uma coisa é o conceito de imagem na poesia, outra é a configuração da imagem no cinema. Duas linguagens que sempre nos parecem inconciliáveis, como se verifica na dificuldade que há em se levar para o cinema uma história narrada antes literariamente. É claro que a imagem na poesia resulta de um processo mental e é produzida pela imaginação, assumindo assim um valor psicológico como diria Octávio Paz. A imagem no cinema está ao alcance de nossa visão, entra-nos pelos olhos, dispensando-nos de imaginá-la ou de formulá-la com algum esforço mental. Pode uma imagem cinematográfica ser poética, mas não é fácil uma imagem poética ser cinematográfica. Como então traduzir um poema no cinema, quando nos achamos aptos a produzir, com palavras, imagens que nenhum processo fotográfico é capaz de captar?
    Essas ideias um tanto óbvias me vieram à mente depois que assisti a um milagre da arte, na fusão de imagens mentais e visuais concentradas numa só que, ao mesmo tempo, real, virtual, abstrata, nos deu, não o quadro dantesco medievo, já distanciado de nós, mas a panorâmica naureana que, em nossos dias, no filme Infernos, revela-nos o homem, este sim, verdadeiramente integrado à cidade com a cidade visceralmente contida nele, e embutidos ambos no contexto em chamas de fornalha supliciadora dos atos e fatos de nossa natureza anímica. Revela-nos também uma São Luís crucificada, sofrida em seus tormentos, suas angústias, suas náuseas. Um milagre poético-cinematográfico, no inferno da condição humana, e em que a poesia é, simultaneamente, ouvida e vista, na total expressividade de sua força lírico-dramática e na concretização ontológica de todas as vivências existenciais.
    No filme, o poeta Nauro Machado se apresenta como ele é: dionisíaco, diabólico, mas ao mesmo tempo puro e sacro, visto que o inferno também pode purificar. Sabe-se que todo grande poeta tem de descer às geenas para sua temporada de catarse, de purgação. Não é só o purgatório que faz isso. Mas o poeta não desce lá para condenar-se a si mesmo, porque já leva a sua danação como carta de alforria, vazada na própria lâmina de sua ardente ânsia demoníaca. O poeta é maior que todo o inferno. Não cabe dentro dele. E é satanicamente livre. Circula por lá como Dante circulou assistindo a todas as tragédias por que passa a humanidade. O inferno lhe é uma estação, um ponto de partida para a escalada tortuosa até o paraíso. E Nauro é poeta antes do poema, dentro do poema e além do poema. Está entre os que tanto conhecem a poesia da vida como a vida da poesia e sabe quando ambas se fundem e se confundem consubstanciando-se em poemas forjados no fogo infernal e alucinado dos dias. Para isso recebeu o mesmo sopro augusto de outro Augusto que se confessou um “monstro de escuridão e rutilância”. O filme revela, pois, toda a rutilação desse nosso monstro satânico-sagrado, e o tira intacto de sua escuridão. Ser poeta é duro e dura toda uma existência, bem disse ele.
    As chamas infernais lhe fervem as veias, põem em ebulição as misteriosas águas em que ele mergulha até o mais fundo de sua alma, conhece a natureza de todos os naufrágios, de todos os abismos abertos aos desejos suicidas e aos que se embriagam por compaixão para com o mundo que os cerca. O filme é magistral registro de sua passagem pelo inferno, a que ele próprio assiste, agora, liberto para o seu purgatório no dia-a-dia, pois a verdade é que o poeta hoje já não é o mesmo, pelo menos do ponto de vista daqueles que não sabiam vê-lo senão pela decorrência dos efeitos etílicos. Daí eu haver dito que o inferno também pode ser lugar de purificação. E é, não resta a menor dúvida.
    Aliás, no filme, o que se tem de observar não é a embriaguez pessoal do poeta, mas a embriaguez da própria vida a persistir às tontas pelos meandros a que é arrastada, por nossos becos e vielas, numa cidade que, por sua vez, cambaleia diante de nossos descuidos, de nossos desleixos, e por isso é que ali o poeta desaba juntamente com ela, tal é o seu amor à urbe de onde nunca quis sair, por mais que lhe oferecessem oportunidades lá fora. Infernos é, portanto, também um protesto. Uma chance para a poesia dar o seu grito de alarme, que ecoa na solidão do mundo, e também mostrar-se não só aos ouvidos, mas aos olhos espantados dos que ainda não haviam tomado conhecimento dela. E só um cineasta de grande talento poderia nos dar uma obra assim.
    Pois cabe-nos perguntar agora: – Como pôde tudo isso passar da forma abstrata do poema para o registro visual da tela cinematográfica, numa tão extraordinária expressão imagística que eleva o filme Infernos à categoria de um precioso monumento, quando, em circunstâncias outras, seria, quando muito, uma simples peça documental? Como pôde realizar-se o milagre de que falei acima? E é aí que se vê mais uma vez como vida e poesia se mesclam, se imiscuem, se integram, de tal modo que Nauro já não é apenas o homem-poeta, mas a própria poesia em pessoa, inclusive estabelecendo até uma determinação liricamente genética, pois tão poesia é ele que não poderia gerar outro ser senão como poeta também, embora noutro plano da linguagem. Não fosse a mãe outra fonte de poesia. E eis uma lírica família, no melhor sentido da expressão.
    Infernos é produto de pai e filho, na mais íntima combinação existencial, porque não se trata de um mero encontro entre os dois, mas na natural extensão de um no outro, no prolongamento de uma espiritualidade que nem sempre é comum entre pai e filho. Mas aqui vemos que Frederico Machado, o filho, é tão poeta no cinema como Nauro Machado, o pai, o é na literatura. E eis, portanto, um filme de carne e espírito, de cruciante verdade, porque é o testemunho ou a confissão nua e crua de uma alma bradando a consciente aflição de sua dolorosa esperança. Um filme em que a arte se reparte em dois e se fecha na unidade de sua grandeza única. Um curta que é longo.
* Do portal da Academia Maranhense de Letras