Páginas

domingo, 3 de agosto de 2014

Um caso de polícia - FERREIRA GULLAR

A divulgação de um vídeo gravado dentro de um carro-patrulha da Polícia Militar do Rio deixou-me chocado
    Não faz muito tempo, escrevi aqui uma crônica em que procurava mostrar que a desmoralização da polícia não ajuda os cidadãos e, sim, ao contrário, ajuda os criminosos.
    Dizia, portanto, apenas o óbvio, uma vez que a polícia é um órgão do Estado, criado e mantido por ele, para garantir a segurança dos cidadãos. Admitia, claro, que muitos policiais abusam da autoridade que lhes é delegada por nós e chegam mesmo a agir como bandidos.
    Mas não é assim que age a maioria dos policiais. Esses merecem nosso respeito e nosso reconhecimento, já que a sua função implica frequentemente em pôr a própria vida em risco.
    Isso afirmei naquela ocasião e o mantenho, porque é essencialmente verdade. Não obstante, a divulgação de um vídeo gravado dentro de um carro-patrulha da Polícia Militar do Rio de Janeiro deixou-me chocado e revoltado. Não tenho dúvida de que essa terá sido a reação de todas as pessoas que o viram.
    No carro estavam dois cabos da PM que haviam prendido três garotos suspeitos de praticarem furtos no centro da cidade.
    Puseram os garotos na mala do carro e rumaram para o morro do Sumaré, que fica acima da floresta da Tijuca, local habitualmente deserto.
    Enquanto viajavam para lá, estavam sendo filmados por um equipamento de vídeo instalado no veículo, com o propósito de controlar a ação dos seus ocupantes.
    Os soldados pareciam se divertir com aquela tarefa e conversavam: "Vamos descarregar a arma neles?...", disse um deles, e o outro: "Jogar eles lá de cima". Conversavam e riam, como se falassem de coisas engraçadas.
    Finalmente, chegaram ao alto do Sumaré. Fizeram o terceiro garoto descer e seguiram até o ponto em que estacionaram e um deles saiu para tirar os garotos do porta-malas. Em seguida, o outro guarda também saiu do carro. Dava para ver o momento em que abriram a mala, mas a partir daí a gravação parou.
    Não se viu nem ouviu o que aconteceu, para onde os levaram, o que fizeram com eles.
    Depois de um tempo, retornam e a gravação recomeça. Dão a volta no carro e, mais adiante, pegam o garoto que haviam deixado na estrada. Por que o deixaram ali e agora o pegam de volta? Para que não visse o que iam fazer com os outros dois?
    Fazem-no sentar no banco traseiro e um dos guardas diz a ele que, se souberem que alguém andou falando do que ocorreu ali, a coisa vai engrossar.
   Avisam-lhe que deve ficar de bico calado, não sabe de nada, não aconteceu nada. Mais tarde, quando certamente já estão de volta à cidade, fazem o garoto descer e seguem seu caminho, sorridentes, felizes da tarefa realizada. Mas que tarefa foi essa: matar os dois pivetes?
    Inacreditável, pensei comigo mesmo. Que há policiais que matam bandidos, todo mundo sabe. Mas, neste caso, havia uma coisa surpreendente: aqueles dois cabos da PM disseram o que disseram, dando a entender que iam executar os garotos, sabendo que estavam sendo gravados pelas duas câmeras instaladas no carro.
    As câmeras não são postas ali sem o conhecimento de quem usa o veículo; são postas ali para que eles saibam que estão sendo vigiados. E sabem também que as gravações são depois levadas para a sede da polícia e armazenadas para serem posteriormente analisadas por oficiais da corporação.
    E mesmo assim aqueles dois cabos deixavam claro que iam dar fim aos meninos e ainda ameaçam o terceiro para que não conte nada do que houve?
    Ou seja, se o menino não falar, nada se saberá. Mas e a gravação?
    Pois, sim, se os policiais sabiam que tudo o que diziam estava sendo gravado, se deixaram claro que puseram os garotos na mala do carro, que depois os tiraram de lá e os executaram e o vídeo mostra isso, a pergunta inevitável é esta: eles estavam certos de que, ainda que o comando da PM viesse a saber do crime que praticaram, nada lhes aconteceria?
    Ou seja, o comando da PM está de acordo com a execução de suspeitos?
    Sinceramente, sem pretender fazer juízo antecipado de ninguém, acho que o comando da Polícia Militar do Rio de Janeiro deve uma explicação à opinião pública.