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domingo, 6 de abril de 2014

Tentando entender - FERREIRA GULLAR


Para as bienais, o que passou a importar foi a quantidade das obras e não tanto a qualidade
    Quando, em 1951, na companhia de Mário Pedrosa e Ivan Serpa, visitei a 1ª Bienal de São Paulo, deslumbrei-me com tanta obra de arte ali exposta. Mesmo porque, além das obras recentes, que estavam sendo exibidas pela primeira vez, havia uma sala especial com obras de Picasso, Giacometti e Magritte, além de outros artistas que haviam revolucionado as artes plásticas do século 20.
    Deslumbrei-me mas surgiu-me na mente uma pergunta que só se formulou claramente na 2ª Bienal. Ali estavam expostas centenas de obras de arte, criadas por pintores, escultores, gravadores do mundo inteiro. Então pensei: daqui a dois anos haverá outra bienal, também com centenas de novas obras. E assim será dois anos depois e daí por diante, a cada dois anos, centenas de novas obras de arte terão que ser produzidas. E daí minha pergunta: mas é possível produzir tantas obras de arte, de dois em dois anos e para o resto do tempo?
    Foi então que me assaltou uma preocupação. No meu modo de pensar, fazer arte requer certo estado de espírito, capacidade criativa, domínio técnico etc etc. Muitos artistas passam semanas trabalhando num mesmo quadro, outros passam meses. Como então produzir tantas obras de real qualidade num espaço de apenas dois anos?
    Não soube responder e, depois, deixei de fazer-me essa indagação. Mas ela me voltou recentemente ao tentar entender esse fenômeno chamado "arte contemporânea", que tem como principal característica o não fazer: é uma expressão que dispensa o domínio da linguagem estética e, mais que isso, dispensa o fazer.
    Por exemplo, vi recentemente uma exposição que consistia na reunião de dezenas de objetos que a expositora havia recolhido durante uma viagem. Havia de tudo ali, e tanto podia ser a saboneteira que ela expôs como uma escova de dentes ou um par de chinelos. Ela não fez nada daquilo, claro, apenas foi recolhendo e pondo na maleta. Outra exposição que visitei mostrava lençóis que teriam sido usados em hospitais, conforme dizia um texto na parede, porque, sem isso, ninguém o adivinharia, certo? Claro que há, dentro dessa tendência, obras interessantes e de qualidade, mas são raras. A quase totalidade dispensa a realização estética e não quer durar: é só uma sacação.
    Mas o que tem isso a ver com as bienais? Essa foi a pergunta que me fiz e, tentando respondê-la, cheguei à seguinte conclusão: as bienais, por seu tamanho, sua regularidade e a importância que adquiriram na vida artística atual, determinaram o rumo tomado pela artes plásticas do século 20. Mas determinaram como? Cabe indagar. A resposta, a meu ver é a seguinte: passou-se a fazer arte para as bienais, ou seja, em quantidade suficiente para ocupar seus amplos espaços; melhor dizendo, participar das bienais tornou-se obrigatório para o prestígio do artista e, por outro lado, elas, para sobreviver, necessitam de obras em tal quantidade que preencham as salas. Desse modo, quanto mais produzam os artistas, melhor para as bienais. E assim, um fator condicionou o outro: para as bienais, o que passou a importar foi a quantidade das obras e não tanto a qualidade, enquanto, para o artista, expor nelas atribui a suas obras a qualificação de arte.
    Dizendo de outro modo: no passado, o artista realizava os seus quadros sem pressa, dedicando-lhes o tempo que fosse necessário à sua plena realização; expor era outro assunto, era outro momento. As bienais, tendo se tornado a exibição de novidades no campo da arte, tornou-se também o lugar propício à mostra das mais inusitadas manifestações, pouco importando o que se defina como qualidade artística. O inusitado tornou-se o traço essencial das obras exibidas ali. Assim, as bienais deixaram de ser mostras de arte para exibirem instalações que duravam o tempo que duram as bienais. Desmontada a bienal, desmontam-se as obras, tornadas também eventuais.
    Esta crônica já estava escrita quando li a notícia de que o curador da próxima Bienal de São Paulo encarregou artistas de realizarem obras seguindo uma proposta sua, do curador. Isso vem confirmar minha observação, com um dado a mais: a bienal é que é, agora, a obra de arte, a grande instalação que os artistas são chamados a realizar.