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quarta-feira, 12 de março de 2014

Crise na Ucrânia ameaça paralisar base de lançamento de Alcântara

Selado em 2003, programa ucraniano-brasileiro de lançamento de foguetes, a partir do Maranhão, já consumiu R$ 1 bilhão

A crise na Ucrânia ameaça a parceria com o Brasil para lançar foguetes a partir da base de Alcântara, no Maranhão. O Cyclone 4, projetado por empresas ucranianas, corre o risco de não decolar. Se isso ocorrer, será desperdiçado cerca de R$ 1 bilhão, valor já investido pelos dois países no projeto, que pretende explorar serviços comerciais de lançamento de satélites.
A última previsão de lançamento era para o início de 2015, quando o Brasil sinalizaria ao mundo sua entrada no bilionário segmento de satélites e reabilitaria a base de lançamento de Alcântara, cuja imagem foi prejudicada pela explosão que destruiu o foguete brasileiro VLS-1 V03, em 2003. A princípio, o governo mantém o otimismo, mas já admite mudanças no calendário, dilatando prazos e prevendo novos atrasos diante da tensão militar no Leste Europeu:
— O acordo assinado entre o Brasil e a Ucrânia para a construção do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) e do Veículo Lançador Cyclone 4 prossegue normalmente. O cronograma estabelecido prevê o primeiro lançamento do foguete no final de 2015, podendo sofrer pequena variação ­— informa o brigadeiro Wagner Santilli, da Alcântara Cyclone Space (ACS).
O clima, porém, é de apreensão. No governo, há um jogo de empurra. A Agência Espacial Brasileira (AEB), que tem uma previsão orçamentária de R$ 300 milhões para investir no projeto, não quis se pronunciar. Nos bastidores, comenta-se que não há o que fazer, a não ser acompanhar a evolução do cenário na Ucrânia. Ou seja, o futuro do projeto é incerto.
A ACS é uma joint venture binacional criada em 2006. Pelo acordo, o Brasil forneceria as instalações de Alcântara e, a Ucrânia, o foguete. A ACS é responsável pela criação do Centro de Lançamento de Alcântara, cujas obras estão 40% concluídas.
A situação da Ucrânia, contudo, só agravou ainda mais o arrastado projeto, fechado no início do primeiro mandato de Lula. À época da aprovação do acordo, em julho de 2003, a previsão era lançar o foguete em 2006. O acidente em Alcântara, ocorrido um mês depois, em agosto de 2003, adiou os planos. Em uma nova projeção, o então presidente Lula contava com o lançamento do foguete em 2010, no final do seu segundo mandato.
Atrasos de repasses prejudicam projeto
Desde que foi assinada e aprovada no Congresso, em 2003, a parceria com a Ucrânia sofre com o atraso nos repasses de recursos.
A situação começou a melhorar em 2011, já no governo Dilma Rousseff, a partir da visita ao Brasil do então presidente Viktor Yanukovich, deposto no último dia 22 pelo parlamento, em meio a uma crise envolvendo a Rússia e a União Europeia. À época, os repasses foram regularizados, e o desenvolvimento do foguete — que se encontra 78% pronto — acelerado.
No ano passado, novamente, faltou dinheiro por conta do ajuste fiscal no Brasil e da situação econômica da Ucrânia, que já dava sinais de abatimento. Diante da situação financeira, o desenvolvimento do foguete deixou de ser prioridade e, no Brasil, os atrasos na liberação de recursos afetaram as obras em Alcântara.
Ou seja, mesmo que o projeto decole, há ceticismo de especialistas quanto ao retorno financeiro e à real capacidade do Brasil de se tornar uma potência espacial.
José Nivaldo Hinckel, especialista em propulsão espacial do Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (Inpe), considera o argumento de retorno econômico descabido. O lucro com cada lançamento é irrisório em relação ao custo do projeto, que comporta infraestrutura de lançamento e equipes envolvidas que não podem ser recrutadas e, depois, dispensadas. Hinckel lembra ainda que o custo anual de manutenção de um sistema de lançamento de satélites é elevado e que dificilmente a ACS obterá um ritmo superior a dois ou três lançamentos anuais.
— A ACS não poderá cobrar mais do que US$ 50 milhões (cerca de R$ 116 milhões) por lançamento. Fica claro que não há perspectiva de lucro para um ritmo de lançamentos inferior a uma dúzia, algo impossível de se alcançar nem na mais otimista das hipóteses — atesta ele.
Hinckel tem outras ressalvas e considera o programa tecnicamente "duvidoso" por conta dos propelentes (combustível e oxidante) usados no Cyclone, de alto potencial tóxico. Ele alerta que, se ocorrer um vazamento ou falha no lançamento, haverá riscos ao ambiente.
— É importante ter acesso ao espaço, do ponto de vista estratégico, mas nunca vi possibilidade de sucesso no projeto da ACS. Economicamente não é viável e, se o objetivo era salvar uma indústria que não tinha como sobreviver na própria Ucrânia, agora politicamente ficou mais difícil ainda — diz ele.
As origens
Em 2003, Brasil aprovou e assinou acordo espacial com os ucranianos
O acordo
— A preocupação com a soberania nacional pesou na escolha da Ucrânia como parceira do Brasil. Herdeira da escola espacial da antiga União Soviética, a Ucrânia domina a tecnologia de ponta na área. As tratativas se iniciaram no governo Fernando Henrique, que também negociava com os Estados Unidos a utilização da base de Alcântara. O tema foi um dos assuntos polêmicos da eleição presidencial de 2002.
— Lula prometia rediscutir o acordo se fosse eleito. Com a vitória dele, as tratativas com os EUA foram sepultadas. Eram alvo de críticas dos movimentos sociais e até da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que chegou a organizar um plebiscito, sem caráter oficial, sobre o assunto.
O Cyclone 4
— O foguete projetado para o Brasil é da família Cyclone, existente desde 1969 e com um histórico bem-sucedido. Em 226 testes de lançamento, houve só seis falhas. Um pool de 16 empresas estão envolvidas na construção do Cyclone 4, na cidade de Dnipropetrovsk. A nova versão terá alta precisão e aumento de 30% na capacidade de carregar combustível. O artefato tem vida útil de até 20 anos.
A base
— O centro de lançamento é um complexo localizado na península em frente a São Luís, capital do Maranhão. Das bases que operam em regime comercial, Alcântara se destaca pelo trunfo geográfico. Devido à proximidade à linha do Equador, um lançamento em Alcântara gasta menos combustível do que os projetados das bases de Cabo Canaveral (EUA) e de Baikonur (Cazaquistão).
O Acidente
— Em agosto de 2003, ocorreu uma tragédia que adiou o desenvolvimento do programa espacial brasileiro. Um Veículo Lançador de Satélites (VLS), com 21 metros de altura e que colocaria em órbita dois satélites desenvolvidos no Brasil, foi acionado antes do tempo. Com a ignição prematura do VLS — provocada por uma peça que custa apenas US$ 10 —, a torre acabou explodindo, matando 21 profissionais. Uma delegação da Ucrânia estava no país para acompanhar o lançamento. À época, foi a terceira tentativa frustrada. Em outros dois testes com VLS, em 1997 e 1999, ocorreram falhas, e os protótipos tiveram que ser destruídos, logo após a partida.