A briga de torcidas, ontem, em Joinville não foi a primeira; o que é preciso fazer para que ela seja a última?
Mais um episódio que envergonha profundamente o futebol brasileiro ocorreu na tarde de ontem, quando uma briga entre torcedores do Atlético Paranaense e do Vasco da Gama, em Joinville (SC), resultou em três torcedores gravemente feridos. O que deveria deixar todo brasileiro perplexo é o fato de confrontos em larga escala como o observado ontem não serem novidade, e nem exclusividade de estado algum, e de tão pouco ter sido feito para eliminar essa chaga do país que já está sob o olhar de todo o mundo esportivo por causa da Copa do Mundo.
O que é considerada a primeira morte ligada ao futebol no país ocorreu em 1988. De lá para cá o problema só piorou, e o Paraná não foi poupado. O caso mais recente no estado ocorreu em julho de 2012: Diego Goncieiro, 16 anos, membro da Fúria Independente, torcida organizada do Paraná Clube, morreu com um tiro no rosto, disparado supostamente por membros da torcida Os Fanáticos, do Atlético Paranaense.
A tragédia de ontem foi facilitada por um entendimento entre a Polícia Militar e o Ministério Público catarinenses, segundo o qual a partida era um evento particular e, por isso, a segurança deveria ser feita por forças privadas. No entanto, ainda que houvesse a presença policial costumeira, sabe-se que muitas vezes ela não é suficiente para inibir os brigões, que além disso passaram a adotar a estratégia de marcar brigas em locais distantes dos estádios e do aparato policial que costuma estar mobilizado para as partidas. Foi assim que os palmeirenses André Lezo e Guilherme Moreira morreram, em 2012, em um confronto entre as organizadas Mancha Alviverde e Gaviões da Fiel na zona norte de São Paulo, muito longe do Pacaembu, onde o Corinthians jogaria naquele dia.
Um traço comum em praticamente todos os casos de brigas de torcedores é a presença das torcidas organizadas. Há muito se sabe que esses grupos servem de abrigo para pessoas muito mais interessadas em criar confusão e agredir torcedores rivais que em apoiar seu time do coração. La Doce, livro do repórter argentino Gustavo Grabia, mostra a que ponto uma torcida organizada pode chegar. O nome da obra remete à principal organizada do Boca Juniors e refaz a história do grupo, que hoje se tornou praticamente uma máfia envolvida inclusive com o tráfico de drogas. Aliás, o modelo argentino dos barras bravas, verdadeiras milícias disfarçadas de torcidas organizadas, está lentamente sendo importado para o Brasil, como mostraram jornalistas da Rádio Gaúcha, de Porto Alegre, que revelaram os bastidores de torcidas de Grêmio e Internacional.
Essa irracionalidade precisa parar. Mas, por mais que o primeiro impulso seja pedir a dissolução pura e simples das organizadas, essa solução não nos parece a melhor, pois desrespeitaria o direito à associação. As organizadas não precisam ser extintas, mas precisam passar por uma limpeza geral e urgente. É um processo que deveria começar pelas próprias torcidas. Não basta expulsar os membros desordeiros (nas poucas ocasiões em que isso acontece), é preciso entregá-los à polícia. Mas, quando se observa que muitas das brigas contam com a participação da própria diretoria das torcidas, diminuem as esperanças de uma renovação interna.
Também é imprescindível repensar a relação íntima que existe entre essas torcidas e suas diretorias, que prestigiam as organizadas por piores que sejam os atos praticados por elas. Apesar de situações esporádicas em que os cartolas falam grosso com as organizadas, o histórico dos clubes paranaenses é de ampla camaradagem entre diretoria e torcidas. Mas os clubes precisam escolher: querem privilegiar desordeiros uniformizados ou as famílias que hoje fogem dos estádios?”
Por último, é preciso colocar em prática o Estatuto do Torcedor, que, em seu artigo 39, determina punições às torcidas organizadas cujos membros causarem tumultos, e, em seu artigo 41-B, pune torcedores desordeiros com a proibição de ir aos estádios, com a obrigatoriedade de se apresentar à polícia ou à Justiça durante a realização de partidas. No entanto, não apenas o número de torcedores suspensos é infinitamente inferior à quantidade de envolvidos em tumultos, como também a desobediência a decisões judiciais é generalizada e admitida até por federações estaduais de futebol. Na era das câmeras e das mídias sociais, em que a identificação dos desordeiros é mais fácil que nunca, isso é inaceitável e revela uma falha gritante do poder público.
A selvageria nos estádios mancha uma paixão nacional e afasta aqueles que só desejam incentivar seu time, em um círculo vicioso que atingirá seu ápice quando as arquibancadas forem totalmente dominadas pelos desordeiros. Os torcedores sinceros são o elo mais fraco deste processo de barbarização dos estádios. Sem ação firme dos clubes e do poder público, só podemos esperar a próxima tragédia.