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domingo, 8 de dezembro de 2013

O legado de Mandela - EDITORIAL GAZETA DO POVO - PR


Mandela foi um exemplo de líder que soube trabalhar pela paz e pela conciliação de um país ferido por um sistema explícito de discriminação, rejeitando o revanchismo e uma justiça unilateral

    Não é qualquer pessoa que tem a força moral de, após sofrer por décadas sob um regime racista, promover o perdão e a reconciliação não apenas no nível individual, mas também no nível coletivo. Foi o que Nelson Mandela fez. Após uma longa doença, o ex-presidente sul-africano e vencedor do Prêmio Nobel da Paz morreu na quinta-feira, aos 95 anos. Ele não derrubou o Apartheid sozinho, mas foi essencial para que os governantes brancos da África do Sul aceitassem entregar pacificamente o poder, e para impedir que a maioria negra buscasse se vingar dos antigos algozes em uma possível guerra civil.
    Sempre se recorda a resiliência de Mandela, que não deixou que os 27 anos passados na prisão destruíssem sua convicção a respeito da maldade intrínseca do Apartheid e sua disposição em eliminar um sistema tão perverso. Mas sua trajetória também revela um grande amadurecimento. O Mandela dos anos 60, influenciado por Marx, Fidel Castro, Che Guevara e Mao Tsé-tung, abandonou a resistência pacífica, inspirada em Gandhi, para fundar o grupo terrorista Umkhonto we Sizhe, com membros do Congresso Nacional Africano e do Partido Comunista da África do Sul, e cuja estratégia principal eram os atentados à bomba. Mas o Mandela que saiu da prisão nos anos 90 já não era um adepto da violência: era um homem certo da necessidade de reconciliar brancos e negros.
    E ele o fez de várias maneiras. Incorporou o último presidente do Apartheid, Frederik de Klerk, em seu governo, como vice-presidente, além de ter em seu gabinete vários ministros do Partido Nacional, o criador do sistema de segregação. Impediu a dissolução da seleção nacional de rúgbi, tradicionalmente associada à elite branca sul-africana e odiada pelos negros (um ano depois da posse de Mandela, o time venceria a Copa do Mundo de Rugby realizada na África do Sul, com massivo apoio da população), episódio retratado por John Carlin no livro Conquistando o inimigo, que Clint Eastwood transformou no filme Invictus.
    Uma das grandes iniciativas de Mandela foi o estabelecimento da Comissão da Verdade e Reconciliação, que trabalhou entre 1996 e 1998 e foi comandada por seu amigo Desmond Tutu (vencedor do Nobel da Paz em 1984 pela luta contra o Apartheid), com o objetivo não apenas de conhecer a verdade sobre as violações de direitos humanos cometidas durante o regime de segregação, mas de garantir a anistia aos que cooperassem sem esconder informações, desde que seus crimes fossem politicamente motivados e respeitassem um senso de proporcionalidade. Mandela fez questão de que a comissão investigasse não apenas os crimes dos representantes do Apartheid, mas também as violações de direitos humanos de seus próprios companheiros negros, incluindo os atentados provocados pelo grupo que ele mesmo havia fundado. Por tudo isso, Mandela, para quem “pela paz, pessoas de coragem não temem perdoar”, recebeu muitas críticas, especialmente de militantes para quem só haveria justiça com a punição dos brancos envolvidos com a repressão aos críticos do Apartheid.
    A África do Sul pós-Mandela ainda é um país repleto de grandes desafios. Seus esforços e o trabalho da Comissão não conseguiram a reconciliação no grau pretendido por Mandela – há inúmeras denúncias de assassinatos de fazendeiros brancos motivadas por ódio racial, e um ex-líder do Congresso Nacional Africano, Julius Malema, faz sucesso defendendo o confisco de todas as terras de propriedade dos brancos. A desigualdade econômica entre brancos e negros ainda é gritante, apesar da ascensão de uma elite apelidada de “diamantes negros”, e a violência urbana é alarmante, com taxas de homicídios 50% maiores que as brasileiras. Mas as ações de Mandela fazem dele um exemplo de líder que soube trabalhar pela paz e pela conciliação de um país ferido por um sistema explícito de discriminação, rejeitando o revanchismo e uma justiça unilateral em nome de um presente e um futuro em que todos trabalhem pelo mesmo objetivo.