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domingo, 1 de setembro de 2013

O mundo muda - FERREIRA GULLAR

Quanto mais radical for o militante, mais dificilmente admitirá que o seu sonho acabou
    Os ideais de esquerda nasceram em meados do século 19 e ganharam corpo no começo do século 20, com a revolução de 1917. Com o nascimento da União Soviética, o ideal comunista ganhou corpo, deixou de ser mera utopia para se tornar realidade.
    O sonho de uma sociedade igualitária, em que os trabalhadores seriam os dirigentes da nação e em que a mais-valia reverteria em benefício da sociedade e não de alguns burgueses ricos, parecia enfim concretizar-se.
    É verdade que as primeiras décadas do socialismo soviético não apresentaram resultados muito positivos, mas para quem acreditava na sociedade igualitária, os problemas seriam em breve resolvidos.
    O fato é que a simples existência da URSS já provocara importantes mudanças nos países capitalistas que trataram de atender a algumas reivindicações do trabalhadores.
    A deflagração da Segunda Guerra Mundial, provocada pela Alemanha nazista, tumultuou o processo e provocou uma inesperada aliança entre os países capitalistas avançados e a União Soviética, o que adiou o conflito entre socialismo e capitalismo que, finda a guerra, levaria um mundo à chamada Guerra Fria e à beira de um conflito nuclear, o que felizmente não aconteceu.
    Nesse período, o capitalismo se desenvolveu e derrotou economicamente o socialismo, levando ao fim da União Soviética e do sistema comunista que havia surgido no pós-guerra. A partir de então, o sonho revolucionário dos partidos comunistas disseminados pelo mundo inteiro se desfez. Não era mais possível, sensatamente, continuar lutando por um ideal de sociedade que fracassara.
    Deve-se admitir, no entanto, que não é fácil abrir mão das utopias, dos projetos concebidos e aceitos como salvação da sociedade, o fim da desigualdade, o reino da felicidade sobre a Terra.
    Tais utopias equivalem a crenças religiosas, de que dificilmente as pessoas abrem mão. Elas são, ademais, tanto uma como outra, o que dá sentido à existência. Para alguns é isso, para outros, a afirmação de valores ideológicos aos quais entregaram a vida. Há aí, sem dúvida, uma mistura de autoafirmação e autoengano.
    Isso explica o que aconteceu com as esquerdas em diferentes países, inclusive o Brasil. Deve-se observar que quanto mais radical for o militante, mais dificilmente admitirá que o seu sonho acabou. Em setores da esquerda moderada, algumas mudanças na máquina capitalista aparecem como uma opção admissível, mas não para a esquerda radical que, por isso mesmo, defronta-se com um impasse: sabe que a revolução se tornou inviável mas teima em não aceitar a verdade. O que não significa que devamos aceitar os abusos do capitalismo.
    E então nasce o neopopulismo que é, no fundo, a tentativa de manter o poder, dentro do regime capitalista, mas contra ele. Como isso tornaria o governo inviável, toma decisões contraditórias, para mostrar-se de esquerda e ao mesmo tempo atender às exigências do capital.
    O que ocorre na Venezuela é exemplo disso, onde tal ambivalência conduziu o país a um impasse econômico que se agrava a cada dia. A verdade é que ou o novo governo muda de rumo ou leva o país ao caos econômico e social.
    O que sucedeu na Venezuela começa a acontecer no Brasil, claro que em escala diversa, dada a natureza distinta dos dois países, tanto histórica quanto econômica.
    Aqui, certamente, não surgirá um novo Hugo Chávez nem teremos uma sucessão presidencial tão surrealista quanto a que ocorreu ali. De qualquer modo, a atitude ambivalente do governo petista --que governa com a direita e finge que é de esquerda-- se mantém e compromete o crescimento do país.
    Esse é um aspecto da questão que envolve o que restou da esquerda radical. É que ela chega ao fim tanto pelo esvaziamento ideológico quanto pela idade de seus líderes: Lula e Dilma não têm como seguir adiante por muito tempo.
Em suma, embora ainda haja quem teime em se dizer esquerdista, nenhum político profissional que pretenda de fato ascender no cenário nacional insistirá em repetir os chavões que saíram de moda.
    Quem pretenda fazer carreira política seguirá outro caminho. Uma geração não ideológica --que nada tem da herança utópica surgida com Karl Marx-- assumirá o poder no futuro.
Da Folha